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DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO AOS BENS PÚBLICOS


Autoria:

Larissa Freires


Advogada com formação pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES

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Resumo:

O presente estudo busca realizar uma análise sobre o Instituto da Usucapião no que se refere aos bens públicos, num olhar constitucionalizado do Direito Administrativo com o Direito Civil.

Texto enviado ao JurisWay em 19/10/2015.



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dA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO AOS BENS PÚBLICOS

 

 Larissa Severo de Freires*

 

 

 

 

Resumo: A doutrina majoritária e os tribunais, de acordo com alguns dispositivos constitucionais vem entendendo pela absoluta imprescritibilidade dos bens públicos, ainda que estes não cumpram sua função social. Este trabalho, analisando esta questão, tem por objetivo sustentar a possibilidade de usucapião de bens públicos, tendo por fundamento o princípio da função social da propriedade, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, o direito fundamental da propriedade, os direitos sociais de moradia, do trabalho etc. Este posicionamento busca, por meio da ponderação de valores e princípios do ordenamento jurídico brasileiro relativizar as regras que proíbem a usucapião de propriedade pública, com o intuito de permitir que o particular que tenha preenchidos todos os requisitos da usucapião e ainda, que tenha dado destinação social ao bem público que estava ocioso, adquira a propriedade. Isentar a propriedade pública do dever de cumprir sua função social, não seria legítimo e nem digno de realização de interesse público A pesquisa demonstra que caberá ao intérprete analisar o caso concreto para uma correta aplicação do instituto. Ademais, a presente monografia abordou de forma detalhada em seus capítulos o instituto da usucapião, os bens públicos, o direito de propriedade, bem como o princípio da função social da propriedade. Apesar de ser um tema bastante controvertido, pôde- se sustentar ao final da pesquisa, até mesmo com a exposição de algumas jurisprudências, que, diante a inércia do Estado em relação a alguns bens, aliado ao fato da realização dos direitos fundamentais tão defendido pelo neoconstitucionalismo, é possível usucapir bens públicos, devendo para tanto, analisar caso a caso.

 

 

Palavras-Chave: Usucapião. Bens públicos. Função Social da Propriedade. Direitos e garantias fundamentais.

                                 

 


1 INTRODUÇÃO

 

O presente estudo busca realizar uma análise sobre o Instituto da Usucapião no que se refere aos bens públicos, num olhar constitucionalizado do Direito Administrativo com o Direito Civil. O que se objetiva é estabelecer uma ligação entre esses ramos do direito tendo como fundamento o princípio constitucional da função social da propriedade. Dessa forma, busca-se um clareamento de uma zona cinzenta que se instala entre o direito público e privado no tocante à usucapião de bens públicos.

A doutrina e a jurisprudência, seguindo o disposto no parágrafo 3º do art. 183 e no parágrafo único do art. 191 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), bem como no art. 102 do Código Civil Brasileiro de 2002 (CC/2002) e na Súmula nº 340 do Supremo Tribunal Federal, entende, em sua maioria, pela absoluta impossibilidade de usucapião de bens públicos, sem estabelecer qualquer ressalva quanto a isso. Seguindo este posicionamento, observa-se, que mesmo que uma propriedade pública esteja ociosa, sem nenhuma destinação pública, não haveria que se falar na aplicação do instituto da usucapião a tais bens, ignorando, por completo, o princípio da função social da propriedade elencado na CRFB/1988 pelo simples fato de tratar-se de um bem público.

A imprescritibilidade dos bens públicos, fundamentada no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, atribui à propriedade pública uma proteção especial. Todavia, esta proteção peculiar atinge diretamente a própria coletividade. Um bem público que não obedece ao princípio da função social poderia estar realizando direitos fundamentais elencados na própria Constituição, como, por exemplo, o direito à moradia.  Chega-se a conclusão de que não só o particular teria que suportar sanções pela desídia de seus bens, sobretudo pelo fato do interesse público ser a própria razão da propriedade pública em um Estado Democrático de Direito.

O estudo se divide em três capítulos. O primeiro capítulo traça uma evolução histórica do instituto da usucapião, abordando seus fundamentos e modalidades. O segundo capítulo, por sua vez, aborda o conceito, as características e as classificações dos bens públicos.

Finalmente, o último capítulo se atenta para a problemática do presente estudo, abordando sob a ótica do neoconstitucionalismo a temática do princípio constitucional da função social da propriedade; a ideia do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que se instala como fundamento da imprescritibilidade de bens públicos e a solução dada aos conflitos normativos, tendo por base a técnica da ponderação dos valores e das normas, o princípio da proporcionalidade, bem como a interpretação sistemática e teleológica da Constituição. Além do mais, verificou-se o posicionamento doutrinário e jurisprudencial acerca da possibilidade de usucapião da propriedade pública.

Cumpre destacar, por fim, que o trabalho não pretende contrariar a regra constitucional que prevê a imprescritibilidade dos bens públicos, mas sim, evidenciar que tal regra não tem caráter absoluto, havendo necessidade de ponderar os princípios da CRFB/1988 diante o caso concreto para uma correta exegese.

 

 

 

 2 DA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS NORMATIVOS E DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL À LUZ DO NEOCONSTITUCIONALISMO

 

A doutrina clássica aponta as regras como disciplina de conduta formada por princípios e normas. Os princípios seriam de cunho axiológico, apenas com conteúdo valorativo. Já as normas seriam aquelas possuidoras de força cogente.

Por outro lado, conforme entendimento da doutrina moderna pode-se dizer que tanto as regras quanto os princípios estão abrangidos pelo conceito de norma. Dessa forma, os princípios passam a fazer parte de uma espécie normativa, atribuindo-lhes força cogente. É o que ensina Robert Alexy:

 

Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que devem ser. Ambos devem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos do dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. (ALEXY, 2008, p. 87).

 

Para melhor atender ao preceito da lei buscando o ideal de justiça, o intérprete deve pautar-se na doutrina moderna em que se aplica diretamente princípios dotados de caráter normativo a situações concretas como forma de solucionar um impasse fático e jurídico.

Não obstante serem espécies normativas, as regras e princípios se diferenciam em sua forma de aplicação. Para Alexy, as regras, caracterizadas pelo seu caráter de definitividade, são aplicadas de forma que serão sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra é considerada válida, ela deverá ser obedecida exatamente da forma em que é disposta, nem mais, nem menos. Todavia, os princípios são considerados como “mandamentos de otimização”, devendo ser aplicados em graus variados, buscando a realização de algo na maior medida possível, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, utilizando-se da ponderação. Apesar das distinções entre princípios e regras, tem-se que o sistema jurídico ideal seria aquele composto por ambos, já que estão inter-relacionados. (ALEXY, 2008, p. 89-90).

No que diz respeito a ponderação, Humberto Ávila dispõe:

 

Fala-se, aqui e acolá, em ponderação de bens, de valores, de princípios, de fins, de interesses. [...] É preciso estruturar a ponderação com a inserção de critérios. Isso fica evidente quando se verifica que os estudos sobre a ponderação invariavelmente procuram estruturar a ponderação com os postulados de razoabilidade e de proporcionalidade e direcionar a ponderação mediante utilização dos princípios constitucionais fundamentais. (ÁVILA, 2011, p. 155).

 

Nota-se que, aliado a técnica de ponderação estão os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Tais princípios são importantes tanto na orientação da interpretação jurídica quanto na atividade da Administração Pública. Pedro Lenza, tratando ambos como sinônimos, determina:

 

[...] o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico. (LENZA, 2014, p. 174)

 

Assim, para cessar o conflito existente entre os princípios e as regras constitucionais, deve-se realizar a ponderação, de forma proporcional, determinando qual norma deve prevalecer no caso concreto, sem desconsiderar nenhuma norma, podendo atribuir, no entanto, maior valoração a uma das espécies normativas. O objetivo é preservar os princípios em jogo.

O presente trabalho, tendo em vista a existência de conflitos normativos, onde de um lado se encontra a vedação constitucional de usucapião de bens públicos, cujo fundamento elencado pela doutrina encontra-se no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, e de outro, a previsão do princípio da função social da propriedade, do princípio fundamental da dignidade pessoa humana, do direito de propriedade, e os direitos sociais de moradia, do trabalho etc, busca, através da técnica da ponderação pautada pelo princípio da proporcionalidade estabelecer uma correta exegese do ordenamento jurídico no que se refere a imprescritibilidade de propriedade pública.

Destaca-se que para uma correta interpretação do ordenamento jurídico, deve-se observar a nova conjuntura constitucional, qual seja, o neoconstitucionalismo, cujo fundamento consiste em buscar sempre a eficácia da Constituição, sobretudo no que diz respeito a concretização dos direitos fundamentais. Sobre esse assunto, dispõe Walber de Moura Agra:

 

O neoconstitucionalismo tem como uma de suas marcas a concretização das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um Estado Democrático Social de Direito. Ele pode ser considerado como um movimento caudatário do pós-modernismo. Dentre suas principais características podem ser mencionadas: a) positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e das regras; c) inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva. (AGRA, 2008, p. 31, apud LENZA, 2014, p. 72).

 

A partir desses apontamentos, passa-se a analisar a possibilidade de usucapião de bens públicos.

 

3 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SUA APLICAÇÃO AOS BENS PÚBLICOS

 

O direito de propriedade é um direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso XXII da CRFB/1988 e designa-se como uma garantia de liberdade, bem como uma das condições de acesso ao mínimo existencial do indivíduo.

Para Carlos Roberto Gonçalves, o direito de propriedade é um poder jurídico destinado a um indivíduo para que possa usar, gozar, dispor e reivindicar um bem em sua plenitude, observados, entretanto, os limites estabelecidos na lei. (GONÇALVES, 2012, p. 229-230)

Destaca-se que o direito de propriedade, em conformidade com os ditames da modernidade e das diretrizes do Estado Democrático de Direito está associado aos interesses sociais, buscando a realização do bem comum. Desta forma, percebe-se que a propriedade atual não visa somente o interesse do particular. A ideia de exclusividade e absolutismo consagrada no direito romano não existe mais. Nesse sentido leciona Flávio Tartuce:

 

Pode-se afirmar que essa alteração conceitual demonstra, pelo menos em parte, o rompimento do caráter individualista da propriedade, que prevalecia na visão anterior, pois a supressão da expressão direitos faz alusão a substituição de algo que foi, supostamente, absoluto no passado, o que não mais ocorre atualmente. (TARTUCE, 2012, p. 835)

 

O direito de propriedade tido como uma garantia do indivíduo em servir-se de seus atributos da maneira que melhor lhe aproveita, deve ser realizado objetivando conciliar o direito individual com interesse social. Isto é consequência da funcionalização do direito de propriedade estatuída no artigo 5º, inciso XXIII da CRFB/1988, prevendo que “a propriedade atenderá a sua função social”.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald mencionam que a ordem em que estão previstos o direito de propriedade, bem como a função social (já que um sucede o outro), não é acidental, mas sim intencional, pois há uma relação de complementaridade, sendo princípios de mesma hierarquia. (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 314)

Ainda sob o enfoque do entendimento de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, necessário se faz elucidar o significado de “função social”:

 

A locução função social traduz o comportamento regular do proprietário, exigindo que ele atue numa dimensão na qual realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado do bem que lhe assegure as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale dizer, a propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém, detendo finalidade que se concilie com as metas do organismo social. (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 314)

 

Destaca-se que a função social da propriedade foi estatuída como princípio constitucional fundamental pela CRFB/1988. Não há questionamento quanto ao fato deste princípio ser aplicado à propriedade privada. Todavia, por falta de previsão constitucional expressa, surgem indagações sobre a aplicação do aludido princípio a propriedade pública, já que parte da doutrina sustenta que tal princípio é incompatível com a noção de bens públicos, uma vez que não seria possível a aplicação de sanções em virtude do descumprimento da função social por parte do Estado.

A partir dessa problemática é que surgem os seguintes questionamentos: será que somente um bem privado tem que cumprir a função social da propriedade? Os bens públicos estariam desobrigados? A inércia do poder público no que diz respeito à destinação e uso de seus bens estaria realizando interesse público?

A verdade é que os bens públicos, observado sob o ângulo da concepção democrática da propriedade é uma forma de proteção dos direitos fundamentais, bem como da realização de interesses sociais, havendo, dessa forma, o cumprimento da função social.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald lecionam que a propriedade privada é um direito subjetivo ao passo que a propriedade pública é função social, sendo esta característica inerente aos bens públicos. (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 352)

Assim, cumpre chamar atenção ao fato de que toda e qualquer propriedade, independentemente da pessoa a qual pertença deve se atentar a um fim social, respeitando os preceitos constitucionais ao garantir a segurança jurídica como alvo de um Estado Democrático de Direito.

Interessante neste momento ressaltar as palavras de Karine de Carvalho Guimarães:

 

Funcionam ainda como critério de interpretação e integração da Constituição e do sistema jurídico, dando unidade e coerência a este sistema. Na condição de princípio constitucional – mais que isso: de princípio constitucional fundamental – deve a função social ser obedecida por toda espécie de propriedade, seja pública, seja privada. (GUIMARÃES, 2007). (grifo não original)

 

No mesmo sentido, Cristiana Fortini:

 

A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social (FORTINI, 2004, p. 117). (grifo não original)

 

O princípio da função social da propriedade pública exige do Estado uma política que garanta o bem estar social, além de assegurar a sociedade o direito de questionar o cumprimento da norma constitucional garantido tanto pela ação popular quanto pela ação civil pública, sendo a inércia do Estado submetida a uma sanção jurídica. Sob essa ótica, não só a propriedade privada está obrigada a cumprir o princípio da função social da propriedade, mas, com mais razão, a propriedade pública. É o que dispõe Hélder Luiz Coutinho:

                           

Contudo, em uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição, é possível perceber que não seria lícito e legítimo isentar o poder público da observância do princípio da função social da propriedade no que tange a administração de seus próprios bens, notadamente em um Estado Democrático de Direito. (COUTINHO, 2009, p. 1)

 

Desta forma, seguindo o raciocínio apresentado, atenta-se para a possibilidade de usucapião da propriedade pública que não esteja cumprindo uma função social, notadamente os bens dominicais, visto que, normalmente, não dão ensejo a uma destinação pública.

 

4 DA VEDAÇÃO LEGAL DA USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS E O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO

 

 A vedação de usucapião de bens públicos encontra amparo legal no art. 183, § 3º e art. 191, parágrafo único, ambos da CRFB/1988, bem como no art. 102 do CC/2002. Importante mencionar que a súmula 340 do STF faz a mesma previsão no sentido de não haver usucapião de bens públicos, incluindo nesta regra, os bens dominicais.

Seguindo esses dispositivos legais, a doutrina majoritária firma o entendimento, sem estabelecer qualquer ressalva, de que é impossível aplicar as modalidades de usucapião aos bens públicos. Todavia, a doutrina minoritária, liderada por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald também seguida por Flávio Tartuce e alguns outros doutrinadores, defendem a prescritibilidade dos bens públicos.

Antes de adentrar a qualquer outro assunto, vale aqui discorrer sobre a Súmula nº 340 do STF datada de 1963, cujo teor do enunciado é o seguinte: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.” (BRASIL, 2014).

Desde já, cumpre destacar que o enunciado dessa Súmula fora elaborado sob a égide da Constituição anterior a de 1988 e do Código Civil de 1916. Não estando a referida súmula em conformidade com os ditames do ordenamento jurídico vigente e com a realidade social, não há que prevalecer.

Pode-se dizer que a jurisprudência pátria, de forma quase unânime, tem rejeitado as pretensões com pedido de reconhecimento da prescrição aquisitiva pelo instituto da usucapião de propriedade pública.

A justificativa utilizada para proibir a usucapião de bens púbicos está pautada, sobretudo, no princípio da supremacia do interesse público. Este princípio estabelece que o interesse público sobressai ao interesse particular.  Para alguns, este princípio “é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência.” (MELLO, 2012, p. 99).

A doutrina tradicional elenca o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como sendo um princípio jurídico fundamental do Direito Administrativo, aceito sem demais reflexões. Este princípio não encontra previsão constitucional e por isso é tratado como um princípio implícito, tendo sempre como base a prevalência do interesse público quando houver colisão com um interesse particular.

Todavia, a CRFB/1988 não estabelece nenhuma forma de separação do interesse público do interesse particular, uma vez que não são antagônicos, e sim, complementares. É o que dispõe Humberto Ávila:

 

O interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado (p. ex. preâmbulo e direitos fundamentais). [...]Se eles — o interesse público e o privado — são conceitualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre outro fica prejudicada, bem como a contradição entre ambos.43 A verificação de que a administração deve orientar-se sob o influxo de interesses públicos não significa, nem poderia significar, que se estabeleça uma relação de prevalência entre os interesses públicos e privados. Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado. O interesse público e os interesses privados não estão principalmente em conflito, como pressupõe uma relação de prevalência. Daí a afirmação de HÄBERLE: “Eles comprovam a nova, aberta e móvel relação entre ambas as medidas...” (ÁVILA, 2001, p. 13-14).

 

 

No mesmo sentido leciona Luciana Gaspar:

 

O exame realizado revela, também, que esse “princípio” não pode ser havido como um postulado explicativo do direito administrativo, uma vez que o interesse público não pode ser descrito separadamente ou de forma contraposta aos interesses privados; antes, os interesses privados consistem em uma parte do interesse público, sendo a relação entre ambos de entrelaçamento, e não de contraposição. (DUARTE, 2015)

 

Desta forma, não havendo contradição entre o interesse público e o privado (conceitualmente, são inseparáveis), não há que se falar em prevalência, mas sim em uma ponderação desses interesses, que só é alcançada se observado a proporcionalidade, objetivando uma maior realização dos anseios envolvidos. É o chamado “postulado da unidade da reciprocidade de interesses”, consubstanciado na sistematização das normas da constituição. A aplicação pura e simples desse princípio, sem a observância dos direitos fundamentais do cidadão, bem como do princípio da dignidade da pessoa humana não condiz com o atual ordenamento jurídico brasileiro.

 

5 DA POSSIBILIDADE DE USUCAPIR BENS PÚBLICOS

 

Doutrina recente, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição, utilizam-se de princípios para flexibilizar normas que, uma vez interpretadas sob o viés literal, ocasionam injustiças em algumas circunstâncias. É com o intuito de solucionar alguns impasses que argumenta-se no presente trabalho a possibilidade de usucapir propriedade pública.      

Como já abordado em passagem anterior, a maioria da doutrina e da jurisprudência, de forma quase que absoluta não considera a possibilidade de usucapião de bens públicos, ainda que estes não cumpram a função social. Para essa corrente o bem público é função social em si mesmo.

Percebe-se que doutrinadores e magistrados encontram-se pouco familiarizados com o tema em questão, não se atentando, na maioria das vezes, para os anseios sociais, sobretudo para os direitos fundamentais estabelecidos na CRFB/1988, visto que utilizam-se de um entendimento sumulado ultrapassado, anterior à vigência da CRFB/1988. Todavia, há alguns julgados que coadunam com o entendimento favorável a usucapião de propriedade pública. Em decisão datada de 08 de maio de 2014, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decidiu pela usucapião de bem público na cidade de Antônio Dias, comarca de Coronel Fabriciano, confirmando a sentença do juízo a quo (processo nº 0112383-35.2010.8.13.0194).

 

APELAÇÃO CIVIL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA – DETENÇÃO – INOCORRÊNCIA – POSSE COM “ANIMUS DOMINI” – COMPROVAÇÃO – REQUISITOS DEMONSTRADOS – PRESCRIÇÃO AQUISITIVA – EVIDÊNCIA – POSSIBILIDADE – EVIDÊNCIA – PRECEDENTES - NEGAR PROVIMENTO. - “A prescrição, modo de adquirir domínio pela posse contínua (isto é, sem intermitências), ininterrupta (isto é, sem que tenha sido interrompida por atos de outrem), pacífica (isto é, não adquirida por violência), pública (isto é, exercida à vista de todos e por todos sabida), e ainda revestida com o animus domini, e com os requisitos legais, transfere e consolida no possuidor a propriedade da coisa, transferência que se opera, suprindo a prescrição a falta de prova de título preexistente, ou sanando o vício do modo de aquisição”. (Apelação Cível nº 1.0194.10.011238-3/001, Quinta Câmara Cíveldo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Relator: Barros Levenhagen, julgado em 08/05/2014 – Publicado em 15 de maio de 2014. Disponível em <http://www8.tjmg.jus.br/themis/verificaAssinatura.do?numVerificador=101941001123830012014489367>, acesso em 20 de abril de 2015 às 19:50h.).

 

É uma decisão polêmica, pois o julgado afirma não se tratar de um bem público. É indiscutível, porém, que trata-se de um bem do Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de Minas Gerais (DER/MG), uma autarquia estadual, sendo a mesma de domínio público, tornando-se evidente o equívoco da interpretação do julgador.

Alguns doutrinadores como Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald acreditam que a absoluta impossibilidade de usucapião de propriedade pública é um equívoco. Nesse sentido:

 

Por fim, o art. 102 do Código Civil adverte que os bens públicos não estão sujeitos à usucapião. O legislador foi radical ao deixar claro que a impossibilidade de usucapião atinge todos os bens públicos, seja qual for a natureza ou a finalidade. [...] Detecta-se, ademais, em análise civil-constitucional que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade.  (FARIAS, ROSENVALD, 2013, p. 404).

 

     Seguindo esse raciocínio, os autores em questão, conforme já mencionado anteriormente, classificam os bens públicos em materialmente e formalmente públicos, sendo estes últimos, os excluídos de qualquer forma de ocupação e, por isso, passível de usucapião:

 

Entrementes, a Constituição Federal não atendeu a esta peculiaridade, olvidando-se de ponderar o direito fundamental difuso à função social com o necessário dimensionamento do bem público, de acordo com a sua conformação no caso concreto. Ou seja: se formalmente público, seria possível a usucapião, satisfeitos os demais requisitos; sendo formal e materialmente público, haveria óbice à usucapião. Esta seria a forma mais adequada de tratar a matéria, se lembrarmos que enquanto o bem privado “tem” função social, o bem público “é” função social. (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 405).

 

Maria Sylvia Zanella Di Pietro em consonância com o entendimento dos autores supracitados lamenta a proibição de qualquer tipo de usucapião de imóvel público, sobretudo quando a propriedade tenha realizado sua função social pela atuação do particular. É o que dispõe:

 

A Constituição de 1988, lamentavelmente, proibiu qualquer tipo de usucapião de imóvel público, quer na zona urbana (art. 183, § 3e), quer na área rural (art. 191, parágrafo único), com o que revogou a Lei n 2 6.969/81, na parte relativa aos bens públicos. Essa proibição constitui um retrocesso por retirar do particular que cultiva a terra um dos instrumentos de acesso à propriedade pública, precisamente no momento em que se prestigia a função social da propriedade. (DI PIETRO, 2012, p. 735).

 

Ao fazer uma correta interpretação da ordem constitucional atual, verifica-se que a vedação de forma absoluta de usucapião de bens públicos afronta todo o ordenamento jurídico. Como já explanado anteriormente, a propriedade pública, mais que uma propriedade particular, deve sofrer as sanções decorrentes do não atendimento do princípio constitucional fundamental da função social da propriedade, pois a utilização dos bens públicos pelo Estado deve ser pautada pelo respeito aos interesses socias, uma vez que a função social é inerente à propriedade pública. Assim, não só o particular está propício às penalidades impostas pela legislação pátria em casos de desobediência ao princípio da função social da propriedade.

Diante de situações concretas em que se coloca de um lado o interesse público e de outro o interesse particular é que se torna possível defender o interesse do particular tendo por principal fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito fundamental de propriedade, os direitos sociais de moradia, do trabalho etc. Nesse sentido:

 

A Constituição brasileira de 1988 elevou o princípio da dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa do Brasil. Dessa forma, não fez outra coisa senão considerar que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Assim, toda ação estatal deve ser avaliada considerando-se cada pessoa como um fim em si mesmo ou como meio para outros objetivos, sob pena de inconstitucional. Procura-se, com isso, compatibilizar valores individuais e coletivos. (MARTA; KUMAGAI, 2015).

 

Nessa perspectiva, estando uma propriedade pública sem nenhuma destinação social, deveria a mesma ser suscetível de usucapião pelo particular como forma de realização das garantias e direitos estatuídos na CRFB/1988.

Ao permitir a possibilidade de usucapião de bens públicos por um particular, diretamente estar-se-á realizando interesse individual e indiretamente, interesse público, tendo em vista que aquela propriedade pública que estava ociosa passa, agora, a cumprir uma função social, e também a realizar os direitos fundamentais previstos na CRFB/1988. A proteção dada aos bens públicos não há de prevalecer quando eles não estiverem destinados a realização do interesse social, pois lhe faltará fundamento constitucional.

Ademais, conforme analisado anteriormente, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como justificativa da vedação de usucapião de bens públicos, dando a eles as características da inalienabilidade e imprescritibilidade, deve ser analisado sob a ótica da ponderação de valores, pois não há que se falar em prevalência e sim em complementaridade entre o interesse público e privado.

Interessante destacar que, via de regra, os bens de uso comum do povo e de uso especial, diante de suas destinações públicas, já cumprem a função social. Entretanto, os bens dominiais, por não possuírem uma destinação pública específica, normalmente não realizam a função social da propriedade, sendo, por isso, mais suscetíveis de serem usucapidos.

Benedito Silvério Ribeiro (2008, p. 545), defende a possibilidade de usucapir bens públicos sob outro enfoque. Segundo ele, a imprescritibilidade dos bens públicos se justifica pela sua inalienabilidade, assim, ao se tornarem alienáveis, serão suscetíveis, pois, de serem usucapidos. “Se é certo que imóveis públicos não são adquiridos por usucapião (arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único, da CF), cabe lembrar que uma vez que foram desafetados, perderam o caráter de imprescritíveis, sendo possível, em tese, sejam adquiridos por usucapião.” (RIBEIRO, 2008, p. 545).

O que se discute no presente trabalho não é a possibilidade de usucapir toda e qualquer propriedade pública, mas tão somente aquela propriedade que se encontra desafetada e que esteja contribuindo sobremaneira para a realização de certos direitos e garantias constitucionais de determinado indivíduo, realizando a função social da propriedade. É seguindo esse raciocínio que ganha força os ensinamentos de Farias e Rosenvald ao classificar o bem público em materialmente e formalmente público, com já explanado em linhas pretéritas. Nesse sentido, Cristiana Fortini:

 

A Constituição da República, ao afastar a possibilidade de usucapião de bens públicos, pretendeu acautelar os bens materialmente públicos, ou seja, aqueles que, pela função social a que se destinam, exijam proteção, sob pena de sacrificar o interesse público. Interpretação diversa se distancia da correta exegese da Constituição da República porque implica a mitigação da exigência constitucional de que a propriedade pública e a privada cumpram função social. (FORTINI, 2004, p. 119, 120).

 

Seguindo o raciocínio acima apresentado, faz-se necessário mencionar a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) em que julgou procedente pedido de usucapião de bem público dominical, reformando na ocasião, a sentença de primeiro grau:

 

USUCAPIÃO - BEM PÚBLICO - DISTRITO INDUSTRIAL DE CAMPINAS - TERRENOS DESAPROPRIADOS E VENDIDOS PARA CONSTRUÇÃO DE INDÚSTRIAS - EMDEC CONSTITUÍDA PARA PROCEDER À FORMAÇÃO DO DISTRITO INDUSTRIAL - AFASTAMENTO DA ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO, EM RAZÃO DA DESAFETAÇÃO DOS BENS IMÓVEIS DESAPROPRIADOS - POSSIBILIDADE DE ALIENAÇÃO - RECURSO PROVIDO POR MAIORIA. [...] Cinge-se a controvérsia, em saber se o pedido da recorrente é ou não possível juridicamente. A sentença, acatando a tese da imprescritibilidade do bem público de qualquer natureza, extinguiu o processo sem apreciação do mérito, entendendo ser o pedido impossível juridicamente. Insiste a apelante na possibilidade de haver usucapião de imóvel contido em área desapropriada pela EMDEC, registrado no Cartório Imobiliário em nome do Município de Campinas (fls. 263),. bem público cuja desafetação legal se destinou a implementar o Distrito Industrial de Campinas (fls. 136). [...] Tem razão a apelante quando afirma ser o pedido juridicamente possível, devendo ser afastada a decisão de primeiro grau que julgou o feito extinto sem análise de mérito. [...] Se assim é, o bem desapropriado passou a compor o patrimônio disponível da Municipalidade,, mas ocorreu a desafetação, podendo, dessa maneira, ingressar no patrimônio particular das empresas que tinham interesse na formação do Distrito Industrial de Campinas. [...] Diante dos precedentes deste Tribunal e dos demais julgados apresentados pela recorrente, não se pode negar que o pedido é viável. Relativamente à posse longeva e com intenção de dono, da autora, nenhuma controvérsia existe. Bem por isso, fica reformada a sentença e julga-se procedente a ação de usucapião para reconhecer a propriedade da empresa autora. (Apelação Cível nº 9172311-97.2007.8.26.0000. 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: João Carlos Garcia, julgado em 24/05/2011- Publicado em 21/07/2011. Disponível em acesso em 24 de abril de 2015 às 13:30h. ).

 

 

Oportunamente, cumpre destacar o voto da relatora Lucila Toledo em sede de embargos infringentes, o qual foi rejeitado por maioria. Para ela, os bens dominiais são desprovidos de afetação, podendo ser alienáveis. Assim, no momento em que um bem se torna disponível pelo estado, ele perde seu caráter público, pois demonstra que o Estado perdeu o interesse por tal bem. Nesse ínterim, ela demonstra que um bem dominial é perfeitamente passível de usucapião, não fazendo sentido que o Estado não possa perder um bem alienável pela sua própria inércia. Acrescenta, ainda, que impedir a prescrição de uma propriedade desprezada pelo Estado é um afronta a função social da propriedade. Nesse sentido:

 

EMBARGOS INFRINGENTES - POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE PÚBLICO DOMINIAL DESAFETADO - EMBARGOS REJEITADOS. [...] É fato incontroverso que a autora está instalada no imóvel objeto do litígio, com seu estabelecimento comercial. O cerne do litígio é definir se o bem público dominial já desafetado pode ser objeto de usucapião. [...] Em que pese a Súmula 340 do Egrégio Supremo Tribunal Federal, sua aplicação não deve ser vista de forma absoluta. [...] A conjugação dos argumentos acima leva à conclusão da possibilidade do usucapião de bens públicos dominais, desafetados para a alienação, cumprida sua função social pelo particular usucapiente. [...] Os bens públicos dominiais são os desprovidos de afetação. São bens que podem ser destinados à alienação. A partir do momento em que o bem entra para a esfera de disponibilidade do Estado, ele perde seu caráter público. A desafetação para alienação demonstra que o Estado já não possui mais interesse naquele bem. Significa que ele já não desfruta de interesse público. Se assim ocorre, não devem mais ser aplicadas as prerrogativas de que dispõem os bens essencialmente públicos. O imóvel destinado à alienação, como o do presente caso, torna-se apenas formalmente público. Não se pode afirmar que a sua natureza jurídica continua a mesma de, por exemplo, uma escola ou um hospital mantidos pelo Estado. Não há, portanto, razão para a sua imprescritibilidade, cuja observância, nesses casos, fere a proporcionalidade. Se é possível ao Estado alienar certo tipo de bem, não faz sentido que ele não possa perdê-lo, pela sua própria inércia. Impedir a prescrição aquisitiva do bem desprezado pelo Estado afronta a função social da propriedade.  [...] A norma constitucional que estabelece que os bens públicos são insuscetíveis de usucapião, deve ser interpretada de acordo com a destinação do bem. E o bem já desafetado não tem mais destinação pública. Pelo exposto, rejeito os embargos infringentes. (Embargos Infringentes nº 9172311-97.2007.8.26.0000. 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relatora: Lucila Toledo, Julgado em: 22/05/2012 – Publicado em 04 de junho de 2012. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/show.do?processo.codigo=RMZ00S8TT12KW>, acesso em 25 de abril de 2015 às 10:09h.)

 

Outro argumento favorável a usucapião de bens públicos encontra-se na Lei nº 11.977/09 que instituiu o Programa Minha Casa, Minha Vida. Com o intuito de regularização de posses e aquisição de unidades habitacionais pelos indivíduos de baixa renda, a referida Lei previu em seu art. 60 a aquisição da propriedade por usucapião, incluindo aí a propriedade pública. É o que dispõe:

 

Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.

 

Para alcançar os objetivos acima delineados, a referida Lei trouxe alguns institutos jurídicos, como, por exemplo, a demarcação urbanística e a legitimação da posse. O art. 47, inciso III da Lei nº 11.977/09 conceitua a demarcação urbanística como sendo um “procedimento administrativo pelo qual o poder público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses”. Por outro lado, o inciso IV do art. 47 da Lei em comento dispõe sobre legitimação de posse prevendo que se trata de “ato do poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse”.

Como se vê, a Lei determina que os imóveis públicos também são passíveis de demarcação. Nesse ínterim, não é difícil concluir que esses imóveis demarcados serão objetos de concessão de legitimação de posse, podendo vir a ser convertida em título de propriedade em cartório, uma vez que sua aquisição é por usucapião, conforme previsão do art. 60 acima já transcrito.

Nota-se que apesar da vedação constitucional de usucapião de bens públicos, não há que se falar aqui em conflito de normas, uma vez que sob a ótica da interpretação sistemática, tal dispositivo está em perfeita sintonia com o direito fundamental da função social da propriedade, contribuindo para regularização fundiária de interesse social e, ainda, alcançando o fim maior do Estado que é o resguardo e a concretização da dignidade da pessoa humana, fundamento da CRFB/1988.

Neste viés é que se justifica o debate sobre o tema ora tratado. A possibilidade de usucapir bens públicos deve ser visto como um meio de realização do princípio fundamental da dignidade de pessoa humana, do princípio da função social da propriedade, do direito social de moradia, do trabalho, de propriedade etc. Para atender aos anseios socias, o assunto deve ser analisado em consonância com o princípio da proporcionalidade, da interpretação sistemática e teleológica da CRFB/1988, bem como da ponderação dos princípios que o tema abrange. A aplicação literal da lei fere, por muitas vezes, os direitos fundamentais do cidadão, indo de encontro com os preceitos do neoconstitucionalismo. Nesse sentido, Karine de Carvalho Guimarães:

 

[...] vê-se que a vedação à prescrição aquisitiva, encarada de modo absoluto a todos os bens públicos, inviabiliza a concretização dos princípios maiores esculpidos na Lei Fundamental. Desta sorte, há que se adotar uma solução que, sem violar as regras imanentes ao Direito Administrativo, se harmonize com os escopos do sistema constitucional. É preciso que, através da interpretação constitucional, se extraia uma solução justa para as demandas concretas por uma destinação adequada dos bens públicos. (GUIMARÃES, 2007)

 

Por fim, cumpre destacar que a possibilidade de usucapir bens públicos é um tema complexo, devendo o aplicador do direito ponderar os interesses envolvidos no caso concreto, afim de não cometer injustiças.

 

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Foi demonstrado no decorrer do trabalho que a propriedade pública, da mesma forma que a propriedade particular, deve respeitar o princípio constitucional da função social da propriedade. Ademais, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, utilizado para servir de sustentáculo para a argumentação da imprescritibilidade dos bens públicos, não deve ser interpretado tão somente sob o enfoque da prevalência, mas sim, por uma ponderação de interesses, observando os direitos fundamentais de cada indivíduo. Isso porque não há contradição entre o interesse público e o privado, mas sim, uma complementaridade.

Observou-se, ainda, que a imunidade constitucional da vedação à usucapião de bem públicos, consagrada no art. 102 do CC/2002 e no art. 183, § 3º e art. 191, parágrafo único da CRFB/1988, compatibiliza-se apenas com os bens materialmente públicos, vale dizer, os bens que estejam, de fato, cumprindo a função social da propriedade. Partindo desse pressuposto, conclui-se que a regra da imprescritibilidade dos bens públicos só se legitima quando consorciada com o princípio da função social da propriedade.

No Brasil, ainda há muitas pessoas vivendo à margem da sociedade. Em contrapartida, é notória a quantidade de imóveis públicos abandonados, sendo por muitas vezes ocupados por pessoas de baixa renda que não possuem moradia digna. O Estado, proprietário de bens desafetados, se abstém de utilizá-los ao interesse público, não cumprindo a função social da propriedade.

Dessa forma, a possibilidade de usucapião de bem público que não esteja respeitando o princípio da função social seria uma forma até mesmo de impulsionar o Estado à realização de uma gestão eficiente de seus bens e de seus atos, em benefício da coletividade. O legislador, seguindo esse raciocínio poderia ter relativizado a regra que veda a usucapião de bens públicos, permitindo que os bens dominiais, ou seja, aqueles sem destinação pública específica, pudessem ser adquiridos pelo instituto da usucapião. Poderia, de igual forma, ter aumentado o prazo para a usucapião de propriedade pública, semelhante ao art. 188 do CPC, no qual atribui prazos especiais à fazenda pública. Entretanto, nenhuma ressalva foi feita.

Nota-se que grande parte da doutrina e dos tribunais, seguindo os dispositivos legais, posicionam-se de forma contrária ao entendimento aqui explanado, considerando a absoluta impossibilidade da aplicação do instituto da usucapião aos bens públicos.

Todavia, por uma ponderação de valores e princípios do ordenamento jurídico brasileiro, é possível relativizar a regra constitucional que veda a usucapião de bens públicos. Isso porque as regras jurídicas não são imutáveis, não possuindo, assim, caráter absoluto. O aplicador da norma deve se pautar no critério de unidade e harmonia do ordenamento jurídico, delineado por situações fáticas e concretas de cada parte em uma demanda judicial.

Ademais, sendo o princípio da dignidade da pessoa humana o princípio basilar da CRFB/1988, e estando-o intimamente relacionado com o direito fundamental de acesso à moradia, é possível sustentar a ideia de que entre o princípio da função social da propriedade e a regra que veda a usucapião de propriedade pública, há uma hierarquia axiológica, devendo, pela sua importância, prevalecer a primeira.

Assim, buscando uma interpretação coerente da CRFB/1988 é que se defende a possibilidade de usucapir bens públicos pelo particular que alcançar todos os requisitos da usucapião, observando, assim, o direito fundamental da propriedade, os direitos sociais da moradia, do trabalho, o princípio da função social da propriedade e, sobretudo, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Este raciocínio é fruto de uma interpretação sistemática do Direito, enfocando os preceitos constitucionais sob o aspecto da proporcionalidade, buscando, dessa forma, uma coesão do sistema jurídico normativo.

Cumpre destacar, por fim, que devido a complexidade do estudo da possibilidade de usucapião de bens públicos, o julgador deve analisar o caso concreto para a aplicação do instituto, ponderando os valores presentes em cada relação.

 

 

 

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