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DIREITO PENAL DO INIMIGO: Possibilidade de aplicação no Estado Democrático de Direito Brasileiro, análise à luz da obra Na Colônia Penal de Franz Kafka


Autoria:

Thatiana Katiussia De Sousa Veras


Advogada, Especialista em Direito Civil e Processo Civil, Membro do Tribunal de Justiça Desportiva-TJDPI e Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas do Advogado-CDPA.

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Resumo:

O presente trabalho pretende propiciar uma reflexão acerca da possibilidade do Brasil, como um Estado Democrático de Direito, aplicar a Teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs. A análise será realizada sob a ótica da obra de Franz Kafka.

Texto enviado ao JurisWay em 20/01/2015.

Última edição/atualização em 22/01/2015.



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DIREITO PENAL DO INIMIGO: Possibilidade de aplicação no Estado Democrático de Direito Brasileiro, análise à luz da obra Na Colônia Penal de Franz Kafka

 

RESUMO: O presente trabalho pretende propiciar uma reflexão acerca da possibilidade do Brasil, como um Estado Democrático de Direito, aplicar a Teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs. O debate é vislumbrado diante da crescente violência organizada, do sentimento de insegurança e da pressão midiática por um tratamento rigoroso maior no âmbito penal e processual penal de indivíduos considerados de alta periculosidade. Será estudado  de forma crítica e reflexiva, a interface entre o Direito e Literatura através da análise da obra  Na Colônia Penal de  Franz Kafka, destacando os principais aspectos da teoria penal do Inimigo de Jakobs dentro da obra literária, abordando exemplos da legislação  penal  e processual penal brasileira, a Constituição Federal, a jurisprudência pátria e de institutos presentes em nosso ordenamento jurídico de forte ligação com o Direito Penal do Inimigo. A pesquisa será realizada através do método descritivo-analítico mediante pesquisa bibliográfica desenvolvida através de livros, periódicos jurídicos, internet e documentos diversos.

PALAVRAS-CHAVES: Direito Penal do Inimigo. Estado Democrático de Direito. Na Colônia Penal.

 

DROIT PÉNAL DE L'ENNEMI: La possibilité d'appliquer la règle de Droit Démocratique Brésilien, une analyse à la lumière de l'œuvre Dans la colonie pénitentiaire de Franz Kafka.

 

Résumé: Cet article montre qu'il est destiné à montrer une réflexion sur la possibilité du Brésil, comme un État Démocratique, appliquer la théorie du Droit Pénal de l'Ennemi Günther Jakobs. Le débat est observée par rapport à la violence organisée de plus en plus, le sentiment d'insécurité et la pression des médias pour un traitement rigoureux de la récolte de la procédure pénale et criminelle des individus considérés comme très dangereux. L'interface entre le Droit et la Littérature est étudiée critique et réfléchie, à travers une analyse de l'œuvre: Dans la colonie pénitentiaire de Franz Kafka, mettant en évidence les principaux aspects de la théorie pénale Jakobs ennemi dans le travail littéraire, aborder les exemples Droit Pénal et de Procédure Pénale Brésilienne, la Constitution Fédérale, la patrie et instituts référencés dans notre Système Juridique lien concise à la Loi Pénale de la Jurisprudence de l'Ennemi. La recherche èst effectuée par la méthode descriptive et analytique sur la littérature développée à travers les livres juridiques et littéraires, revues juridiques, des articles de la internet.

Mots-clés: Droit Pénal de l'Ennemi. État Démocratique. Dans la colonie Pénitentiaire.

 

INTRODUÇÃO

O combate à criminalidade é um tema recorrente na sociedade e digno de especial atenção por envolver, acima de tudo, seres humanos, seja do lado do acusado ou da vítima. Encontrar alternativas viáveis e capazes de oferecer à população um sentimento de segurança e tranquilidade social, perante um ordenamento legal, é tarefa por demais árdua.

A crescente criminalidade produz uma insegurança que permeia todos os patamares da sociedade e ganha visibilidade na imprensa midiática. O resultado é a procura por imediatismo nas soluções dos problemas. E a consequência é apelar ao direito penal como forma de resolução do problema da criminalidade.

Diante disso, surge a Teoria do Direito Penal do Inimigo, tendo como precursor e principal propagador o doutrinador alemão Güther Jakobs. Essa teoria  sustenta que o Direito Penal teria por finalidade resguardar o sistema jurídico. Para tanto, ocupar-se-ia, principalmente, da exemplar punição aos delitos cometidos, com o fim de blindar a sociedade, bem como o Estado de possíveis ataques a sua soberania. A teoria encontra, assim, uma simetria no desejo da população brasileira amedrontada e ansiosa por enrijecimento das penas.

Assim, o trabalho ora proposto propiciará uma reflexão interdisciplinar, a partir da obra de Franz Kafka, “Na Colônia Penal”, acerca do contexto jurídico contemporâneo o qual apresenta resquícios do Direito Penal do Inimigo e sua compatibilidade com os princípios e fundamentos do Estado de Direito Democrático. Entende-se necessário travar esse paralelo por conta da maestria de Kafka que de forma profética espelha, através do irreal, a realidade do sistema jurídico penal.

Pretende-se, ainda, instigar uma reflexão menos sensacionalista e midiática e mais humanizadora, como propõe nossa Lei Maior, ao analisar as questões que permeiam o sistema punitivo.

Por todo o exposto é que se justifica o estudo a ser apresentado. Ressalta-se de pronto, que esta pesquisa acadêmica, meramente superficial, tem somente o condão de fomentar a necessidade de um estudo mais aprofundado acerca do tema, não tendo, entretanto, a pretensão de esgotar as indagações intrínsecas a este, mas propor o conhecimento de ideias e discussões doutrinárias sobre a aplicabilidade do Direito Penal do Inimigo.

 

1. O DIREITO E A LITERATURA

1.1 A importância da Literatura para o Direito

Preliminarmente, para melhor discorrer sobre o tema proposto, é necessário apresentar a importância do uso da literatura na compreensão do direito. O objetivo fundamental é estudar as interfaces existentes entre as duas áreas, na mesma linha da tendência da interdisciplinaridade, possibilitando, assim, a abertura de um novo campo para a realização de estudos e pesquisas científicas formando um espaço crítico, através do qual seja possível questionar seus pressupostos, seus fundamentos, sua legitimidade, seu funcionamento, sua efetividade, dentre outros, superando as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico com o escopo de auxiliar os juristas na árdua tarefa de desvelar, através da ficção, a realidade social e jurídica.

A base que deu origem a essa forma de pesquisa fundamenta-se na frase de Paul Klee (2007, págs. 92 e 93): “El arte no imita lo visible; hace visible lo invisible” (A Arte não imita o visível; ela torna visível o não visível). Dela pode-se concluir que a Literatura pode contribuir para o aperfeiçoamento do sentido crítico, da capacidade de análise quanto à realidade que nos circunda, pode contribuir para a compreensão e interpretação do Direito.

 A literatura é uma realidade que pode auxiliar na defesa e na promoção dos direitos fundamentais, e pode influenciar movimentos para a mudança da legislação e das práticas judiciárias, e influenciar a formação daqueles que trabalham com o Direito. Tudo em razão do seu aspecto de clarificador de ideias e do seu poder de trazer à tona reflexões sobre o momento presente que muitas vezes passa despercebida, em um trabalho de plena hermenêutica jurídica analisando o direito não apenas pela letra da lei vencendo, assim, a teoria kelseniana de um suposto Direito Puro, sem intervenção de outras ciências.

 

1.2 Direito como literatura, direito da literatura e direito na literatura

Foi o Law and Literature Movement, iniciado na década de 70 nos Estados Unidos, que deu impulso aos estudos do Direito e Literatura, sistematizando e organizando esse método de estudo. O movimento fez com que esse método aparecesse, em regra, numa divisão tripla: O Direito como Literatura, O Direito da Literatura, O Direito na Literatura.

O Direito como Literatura traz a linguagem como ponto convergente entre ambas ciências. É o Direito como narrativa, estudando-se método de estilística e retórica, no qual instrumentos e estratégias literárias são também aplicados aos textos jurídicos, em que se faz uso de metáforas, cuida-se da questão da interpretação dos textos, de técnicas de desconstrução das histórias, de aplicação das normas, e de técnicas de persuasão dos juízes

Já O Direito da Literatura diz respeito aos problemas relacionados com a liberdade de expressão, e com os direitos de autor (garantias constitucionalmente assegurada conforme o art. 5º, inciso IV da Constituição Federal), a livre iniciativa (prescrita no artigo 170, da Constituição, os delitos em que podem incidir autor e editora quando da publicação de uma obra (a exemplo da apologia à discriminações e preconceitos),

Finalmente O Direito na Literatura estuda as formas sob as quais o Direito é representado na Literatura, é caracterizado por desvendar o Direito a partir da Literatura, método este que transcende eras. Nele encontramos descrições de advogados e instituições jurídicas, relações processuais, violações de direitos, com as suas consequentes cargas de justiça e/ou injustiça.

Na análise do tema em questão será usado o ramo do Direito na Literatura utilizando-se a obra Na Colônia Penal de Franz Kafka, tendo em vista que um dos objetivos do trabalho é a partir de uma obra literária tornar o estudo diferente, prendendo a atenção do leitor e auxiliando na reflexão e crítica do tema.

 

1.3 Franz Kafka e a obra Na Colônia Penal

1.3.1 O Autor

Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883 em Praga, cidade que durante todos os 40 anos de sua vida pertenceu à monarquia austro-húngara, com seu sistema arbitrário. Esse traço será marcante em suas obras e chama atenção a uma comparação com o sistema contemporânea trazendo a surpresa de muitos traços confluentes.

Formou-se em Direito em 1906 e exerceu a profissão no início da carreira, o que lhe deu suporte para suas análises sobre justiça, processos jurídicos, condenações e sobre o papel do Estado. Sua formação jurídica privilegiou um posicionamento crítico e racional sobre os fatos.

Escreveu mais de 20 ensaios e romances. Dentre os mais conhecidos figuram “Metamorfose” que lhe levou a fama e a um sucesso póstumo, “O Processo” e a novela “Na Colônia Penal”, obra em que faremos comentários.

Na vida do autor tudo se tornava literatura e o ofício de escritor era superdimensionado o que de alguma forma absorvia as outras áreas de sua vida. Suas obras retratam as ansiedades e as alienações do homem do século XX e traz um confronto entre os personagens e o poder das instituições, demonstrando a impotência e a fragilidade do ser humano.  Demonstra a possibilidade de se conhecer por dentro o mundo da justiça, sem, no entanto, estar dentro dele, para tanto é necessário o olhar atento e se afastar da pressão exercida pelo senso comum.

 Kafka dá enfoque às coisas que tornam difícil viver em nossa época, na qual as organizações e as estruturas em vez de atuarem em prol da pessoa humana, se colocam contra ela. Para tanto se utiliza da alegoria e da linguagem onírica, como se tudo fosse um pesadelo, mas é uma realidade, contendo, assim, um sentido simbólico, uma analogia com situações reais, absurdas, incompreensíveis, que por vezes se configuram na vida cotidiana.

Ele transpôs para sua literatura uma visão sui generis de um mundo mais pujante e desesperadoramente real do que gostaríamos de admitir. Ao ler é impossível não se sentir afetado, ainda mais pelo tom profético que sua literatura ganha com o passar do tempo.

Suas obras atingiram destaque depois de sua morte em 3 de junho de 1924, em virtude de uma tuberculose, e hoje influenciam o mundo. Seu legado foi resgatado e difundido por seu amigo Max Brod, contrariando o desejo de Franz Kafka de que fossem queimados seus escritos após sua morte.

 

1.3.2 A obra

Na colônia Penal é uma novela metafórica escrita em 1914 e publicada em 1919, portanto, durante a Primeira Guerra Mundial. O livro faz uma análise crítica sobre o instituto da pena e do processo penal, analisando as impropriedades e inadequações em uma visão profética.

Nele a justiça e a punição ganham forma através do exercício do poder soberano com a aplicação da “punição exemplar”, típica do período vivido pelo autor. Os caminhos do sistema jurídico são percorridos nas figuras dos personagens que pouco compreendem seu funcionamento, justamente porque este funcionamento não é dado a compreensões, apenas se busca dar soluções aos que ousam desviar as disposições legais.

Todo o livro gira em torno de uma máquina de execução, no descaso do Oficial para com o Condenado e no cuidado com o aparelho de tortura. Os personagens dessa obra não têm nome, são chamados simplesmente de: oficial, explorador, soldado e condenado podendo se moldar a qualquer figura de qualquer tempo histórico.

 A narrativa se inicia com a visita do Explorador a uma colônia francesa, presenciando o modelo empregado na condenação e execução de um soldado acusado de insubordinação, o que é tido como uma ameaça as estruturas estatais, um inimigo do sistema. O tipo do crime não é importante, o que interessa é a pessoa do condenado, sujeito que configura uma ameaça as estruturas estatais.

O sistema que o condena é baseado numa doutrina jurídica arbitrária, em que ao acusado é cerceado os direitos fundamentais, a condição de ser humano. Quem guia a "justiça" é um instrumento de tortura, uma máquina, que escreve lentamente sobre o corpo do condenado, com agulhas de ferro e por 12 horas, a sentença do crime que, muitas vezes, ele mesmo não sabe que cometeu.

O Oficial, personagem que preside a execução, a todo o momento divulga ao Explorador, de forma incisiva e persuasiva, que esse inimigo do Estado deve ser punido drasticamente por ser uma ameaça (visão prospectiva). Para isso utiliza-se de uma eloquência ao exaltar o método empregado de maneira a desafiar qualquer forma de atividade racional. A obra é também uma crítica à essa exaltação dos mecanismos usados com intuitos cruéis.

Na voz dos adeptos desse sistema a justificativa para o seu uso está na sua infalibilidade, única forma tentar de prevenir futuras desordens. O Estado se apresenta despótico no qual o processo judicial e os direitos fundamentais não são respeitados.

Mesmo com todo o esforço do Oficial os interesses eram divergentes entre ele e o Explorador. Enquanto aquele almejava a concordância, com o intuito de ganhar apoio para a manutenção do método, este analisava o processo para compará-lo ao usado em seu país não se deixando persuadir e fazendo um estudo racional e crítico.

Quando o condenado estava para receber o suplício, porém, o Explorador diz ao Oficial o que pensa dos seus métodos de execução - fala que o método não o convenceu, e se dispôs a reportar ao Comandante da colônia penal o seu desejo de suprimir a máquina. Ao ser vencido pelo Explorador que não se deixou influenciar o Oficial percebe-se fraco e inicia-se seu processo de sucumbência, como se fosse o próprio sistema sucumbindo, manda livrar o Condenado, e ele mesmo se  imola na máquina de execução. Esta começa a se desconjuntar, peça por peça, enquanto suas agulhas girando em falso terminam por trespassar o oficial.

A novela finaliza com uma mensagem escrita na lápide do antigo comandante que havia ajudado a criar o torturante procedimento:

Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai!” (KAFKA, 1986, p.77)

Esta última metáfora, escrita na lápide, remete à convicção que os crimes e as torturas voltam a acontecer e que é sempre bom lembrar a necessidade da vigilância social e política. Há sempre adeptos da tortura e do autoritarismo que tentarão persuadir e implementar métodos já superados pela sociedade.

 

1.3.4 Metáforas dos personagens com figuras dos dias atuais

Já foi relatado que os personagens Na Colônia Penal não possuem nomes, são denominados de acordo com o papel que exercem na sociedade como explorador, soldado, oficial, culpado, capitão.Com isso é permitido relacionar com figuras existentes atualmente na sociedade e no processo penal brasileiro, moldando a obra na realidade contemporânea.

Assim, possibilita e instiga à análise crítica do tema na tentativa de se encontrar a resposta para a problemática da pesquisa, ou seja, saber se há compatibilidade da teoria do Direito Penal do Inimigo com o Processo Penal Brasileiro.

A Máquina, grande personagem da obra, faz paralelo com um sistema processual penal que subjuga o acusado e tem suas garantias processuais constitucionais tolhidas a exemplo do contraditório, da ampla defesa, do direito de liberdade e de informação sobre a acusação.

O antigo e o novo Comandante assemelham-se ao Poder Legiferante que formula as regras a serem aplicadas, as penas, a maneira de proferir e executar a sentença.

O Oficial molda-se a mídia com seu poder de persuasão, por vezes tendenciosa e infundada, levada pelo senso comum, parcial na exposição dos fatos, usando de propaganda massiva para captação de novos adeptos.

Já o personagem Soldado figura como o sistema prisional responsável por guardar os acusados durante a execução da pena.

A figura do Condenado é o réu que está sujeito ao cerceamento de garantias e direitos, submetido a uma condenação baseada no que ele ou pode vir a ser e não no que cometeu.

Por fim o Explorador um crítico, que quebra a lógica de ser simples receptor de ideias, formador de opiniões, reflexivo, atuante e combativo. Ele faz paralelo com os estudiosos que buscam impedir o renascimento de sistemas cruéis e incompatíveis com o grau de avanço da sociedade.

2.  DIREITO PENAL DO INIMIGO (OU INIMIGO DO DIREITO PENAL)

 2.1 Origem e características

A globalização trouxe a complexidade das relações sociais e essa, o aumento significativo da criminalidade. Diante disso, nas últimas décadas, a população temerosa passou a exigir do Estado Soberano segurança a todo custo, até mesmo incitando a criação de um Direito Penal excepcional, no qual o infrator deixa de ser “pessoa” e passa a ser “inimigo” do Estado.

 Esses acontecimentos deram origem ao Direito Penal do Inimigo que foi apresentado pela primeira vez durante uma palestra proferida no Seminário de Direito Penal, ocorrida no ano de 1985, em Frankfurt, pelo doutrinador e seu principal idealizador Günther Jakobs.

Contudo, após a intensificação da criminalidade, principalmente a organizada, com o ataque das torres gêmeas em 2011, o qual se fez sentir no mundo, o autor desenvolveu sua tese em uma obra publicada no ano de 2003: “Direito Penal do Inimigo – noções e críticas”, sustentando a possibilidade do direito penal do inimigo ser parte do sistema jurídico penal.

Sua função primeira é a reafirmação da vigência da norma, o clamor por um império das leis que fizesse valer o Direito perante aquele que se mostrasse contrário ao Estado, mesmo que para isso fosse necessário restringir direitos fundamentais em nome da ordem social.

O modelo exposto prega incisivamente a Law and Order como único fator de segurança estatal a trazer o estado de bem-estar social. A simbologia da condenação rigorosa serviria para conter um inimigo e refazer o sentimento de tranquilidade na população.

A obra na Colônia Penal mesmo sendo de 1914, portanto, anterior as primeiras manifestações da teoria, demonstra a aplicação desse modelo penal, em um aspecto profético típico de Kafka. Ele descreve uma condenação por desobediência às ordens superiores (Estado), uma ameaça à segurança nacional, um inimigo, e para repeli-lo a resposta deve ser exemplar, o império das leis deve estar acima de tudo. Isso se extrai do seguinte trecho:

Hoje de manhã um capitão apresentou a denúncia de que este homem, que foi designado seu ordenança e dorme diante da sua porta, dormiu durante o serviço.Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que soa e bater continência diante da porta do capitão. Dever nada difícil, mas necessário, pois ele precisa ficar desperto tanto para vigiar como para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se o ordenança cumpria o seu dever. Abriu a porta às duas horas e o encontrou dormindo [...]. Pegou o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. [...]. São estes os fatos. Faz uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das suas declarações e em seguida lavrei a sentença. (KAFKA, 1986, págs. 41 e 42).

O indivíduo é condenado por um fato que não ocorreu. No caso da obra seu dever era vigiar e servir quando fosse necessário. Porém, ainda que nada tenha acontecido e sendo desnecessários seus serviços naquele momento a sentença se fez oportuna, por sua conduta configurar uma ameaça à soberania do seu superior (Estado) e trazer, em potencial, uma probabilidade de dano advindo desse comportamento.

Tem-se uma nesse trecho uma típica característica da teoria de Jakobs a qual traz na potencialidade do dano um motivo de condenação para reprimir antes que o mal aconteça, estabelecendo o poder e a ordem das normas.

Güther Jakobs afirmava que o Direito Penal deveria deixar de ser uma reação da sociedade ao fato criminoso realizado por um de seus membros, para tornar-se uma reação contra um inimigo desta, contra aquele julgado como uma ameaça à ordem vigente e em consequência à sociedade devendo retê-lo quando de sua conduta restar provado uma afronta aos regulamentos (JAKOBS, 2009).

Com efeito, o sentimento de impotência, insegurança e medo, atualmente vivenciado e repetidamente ratificado nos meios de comunicação de massa, fez surgir  outro sentimento, o de repressão máxima aos inimigos da ordem com o intuito de diminuir a criminalidade e consequentemente proporcionar segurança à nação frente aos novos crimes cometidos. Dessa forma, voltou-se a reavaliar a possibilidade de aplicação da Teoria em análise.

Em resumo as principais características do direito voltado ao inimigo são: antecipação da punibilidade, ou seja, sanção pelo fato que iria ser produzido; dupla legislação penal e relativização ou supressão de determinadas garantias processuais.

2.2 Direito Penal do Cidadão X Direito Penal do Inimigo

A teoria apresenta uma divisão dos infratores de acordo com os crimes cometidos e com o perigo que esses sujeitos representam para a sociedade, caso não sejam neutralizados. O intuito desse ramo do Direito Penal é combater os indivíduos considerados de alta periculosidade e que representam uma ameaça a vida social. Para isso dividiu o Direito Penal em Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo.

Consoante o referido doutrinador o inimigo seria aquele que por livre iniciativa adota o crime como um “estilo de vida”, abandonando o status de cidadão e se tornando alguém que tem como desafeto o Estado. Estes não oferecem uma confirmação cognitiva mínima, ou seja, em seu comportamento social a periculosidade se mostra presente bem como o caráter não incidental da intenção lesiva às normas impostas.

Esse não pode ser considerado pessoa porque, segundo essa teoria, seu conceito tem um viés normativo. Ser pessoa não é inerente a todo e qualquer indivíduo, mas depende do grau de satisfação das expectativas normativas que ele é capaz de oferecer. O inimigo, portanto, seria incapaz de prestar o mínimo de expectativas normativas (de garantia da vigência da norma), pois ele não só refuta a legitimidade do ordenamento jurídico, como busca a sua destruição.

Criminoso que comete infrações penais perigosas como os delitos econômicos, terroristas, sexuais, crimes organizados dentre outras enquadram-se nesse perfil (JAKOBS e MÉLIA, 2009).  A eles faz-se necessário o acionamento de mecanismos mais rigorosos e repressivos, não somente contra fatos passados (o delito praticado), mas também contra fatos futuros (a potencialidade criminosa e a probabilidade de continuar delinquindo).

Cumpre ressaltar, que a figura do inimigo, existiu durante toda a história da sociedade. Como exemplos têm: a santa inquisição; o nazismo; o regime autoritário de Mussolini; as ditaduras na América do Sul; o atentado de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington; o assassinato do brasileiro Jean Charles de Meneses no metro em Londres entre outros.

Na contenção desses indivíduos será utilizado como um de seus instrumentos a relativização dos direitos e garantias fundamentais. Assim como exercido Na colônia Penal de Kafka, onde o condenado é reduzido a condição de objeto (supressão dos direitos fundamentais) e sente a sentença na pele, sem conhecimento prévio do crime que supostamente cometeu. Uma simbolização para servir de caráter pedagógico, restabelecer o rigor legal e instaurar a paz social.

- Ele conhece a sentença?

-Não, disse o oficial, e logo quis continuar suas explicações.

Mas o explorador o interrompeu:

- Ele não conhece a própria sentença?

[...]

- Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentar na própria carne” (Kafka, 1986, p. 39 e 40). 

Desta feita, o Direito Penal do inimigo visa combater determinadas classes de indivíduos, neste sentido assevera com clareza Fernando Capez (2002, p. 302):

A reprovação não se estabelece em função da gravidade do crime praticado, mas do caráter do agente, seu estilo de vida, personalidade, antecedentes, conduta social e dos motivos que o levaram à infração penal. Há, assim, dentro dessa concepção, uma culpabilidade do caráter, culpabilidade pela conduta de vida ou culpabilidade pela decisão de vida.

Convém observar, no entanto, o reconhecimento de um mínimo de garantias a esses indivíduos, embora em raras situações, devendo as medidas estatais de combate a ele não ultrapassar da medida do necessário para atingir sua finalidade, qual seja, manter a vigência da norma e a expectativa de segurança que ela proporciona a seus cidadãos, mesmo que para isso haja um recrudescimento do tratamento processual (JAKOBS e MÉLIA, 2009). O autor não esclarece qual seria o limite a não ser ultrapassado pela medida deixando transparecer que ficaria a cargo do legislador ou do aplicador no caso concreto.

Por outro lado, o cidadão seria o incidentalmente criminoso, aquele que seus atos não revelam a habitualidade em quebrar o acordo social no aspecto de não se desvirtuar dos mandamentos jurídicos. Quando um cidadão comete um delito, o Direito Penal acionado é o clássico, o qual reage contra um fato passado, uma ação já praticada, mediante regras convencionais em que são respeitados os direitos desses indivíduos. Este deve contar com todas as garantias penais e processuais velando pela integralidade do devido processo legal

A diferença entre cidadão e inimigo reside na periculosidade do sujeito ativo. Isso significa dizer que toda pessoa pode vir a cometer uma infração penal, mas somente o inimigo pratica condutas que ameaçam o bem-estar da sociedade, o ordenamento jurídico e o próprio Estado.

Existem para Jakobs duas formas de regulação do comportamento humano. De um lado, o direito regula as relações entre os cidadãos impondo-lhes direitos e deveres mesmo que eventualmente transgridam a lei, de outro, a coação regula as relações com os inimigos que abandonaram o papel de cidadãos e vivem à margem do direito e nesse caso faz-se necessário a negação de algumas garantias.

Nesse sentido, o direito penal do cidadão apresenta-se como a regra, ou seja, é o direito penal que normalmente deve ser utilizado para combater as infrações penais eventualmente praticadas e o direito penal do inimigo deve ser encarado como exceção a ser aplicada tão somente contra aqueles que se comportarem de forma perigosa.

Diante do exposto, o Direito Penal do inimigo baseia-se, principalmente, na aplicação do Direito Penal do autor, onde é culpado o delinquente pelo que ele é, no perigo que representa à sociedade, igual ocorre com o “condenado” na narração da obra de Kafka. Já o Direito Penal do Cidadão há aplicação do Direito Penal do fato, no qual a culpabilidade configura-se no delito cometido. O primeiro assemelha-se com o atual clamor social, reforçado pelo direcionamento midiático, em razão do aumento da divulgação da criminalidade, por um recrudescimento àqueles que “intencionam” não se enquadrar nos parâmetros legais.

 

2.3 Justificativa da criação de uma Teoria do Inimigo do Direito

Diante da impotência do Direito Penal clássico, o qual pune o ato praticado (visão retrospectiva), Jakobs apresenta uma teoria que procura punir pelo ato ainda não praticado (visão prospectiva), impedindo que o delito se instaure. Entende aquele modelo como ultrapassado frente aos avanços da criminalidade na sociedade contemporânea. Utilizando-se do dito popular para Jakobs “ é melhor prevenir do que remediar”.

Para isso Jakoks defende a intensificação da coerção no tratamento de indivíduos delinquentes em potencial, representantes de condutas perigosas porque trazem em si a permanência delitiva. Estas medidas são tidas como necessárias uma vez que tais condutas atentam contra a manutenção da vigência normativa e assim contra a sociedade, o Estado e suas instituições. Na visão do autor o preso não pode cometer delitos se estiver recluso em uma penitenciária: uma prevenção e segurança, ao menos, durante o lapso da pena privativa de liberdade.

O autor justifica, ainda, a aplicação da teoria em estudo dispondo que aquele que age em desalinho com a norma vigente, logicamente, não pode aproveitar desta mesma norma para usufruir de benefícios nela estabelecidos (JAKOBS e MÉLIA, 2009). São indivíduos que quebraram o acordo da sociedade formado pela abdicação de certas liberdades em prol de uma convivência em bem-estar social. Logo, não haveria que se falar em desproporcionalidade entre os tratamentos conferidos, uma vez que igualmente desproporcionais são os riscos apresentados pelo cidadão e pelo inimigo. Neste sentido leciona Jakobs:

[...] além da certeza de que ninguém tem o direito de matar, deve existir também a de que com um alto grau de probabilidade ninguém vá matar. Agora, não somente a norma precisa de um fundamento cognitivo, mas também a pessoa. Aquele que pretende ser tratado como pessoa deve oferecer em troca uma certa garantia cognitiva de que vai se comportar como pessoa. Sem essa garantia, ou quando ela for negada expressamente, o Direito Penal deixa de ser uma reação da sociedade diante da conduta de um de seus membros e passa a ser uma reação contra um adversário (JAKOBS e MÉLIA, 2009, p. 45).

Outro argumento apresentado por Jakobs é que quando essa espécie Penal protege primeiramente a norma, sendo esta devidamente resguardada, e só reflexamente os bens jurídicos essenciais, ou seja, aqueles indispensáveis a coexistência pacífica, sua autoridade restaria reafirmada e em consequência, seus destinatários tomam conhecimento de que ela ainda encontra-se vigente e é soberana devendo ser observada para não ser afastado do convívio social.

Assim, para ele, justifica sua implantação para a restauração do bom convívio em sociedade, uma vez que a pena está voltada contra um indivíduo perigoso, confirmando perante a sociedade a expectativa do rigor normativa esperado, instaurando a segurança.

 

 

 

2.3 A influência dos pensamentos filosóficos

 

A teoria de Jakobs sofre influência jusfilosófica de autores contratualistas como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant. Segundo esses, que há muito tempo elaboraram conceitos de inimigos, o delinquente que rompe o contrato social não pode usufruir dos benefícios do Estado. Diante das referidas construções conceituais encaixa-se o Direito Penal do Inimigo como ferramenta utilizada na luta contra essas ameaças.

Os citados jusfilósofos embora nunca tenham utilizado a expressão “direito penal do inimigo”, fundamentavam o surgimento do Estado a partir de um contrato e quem não o cumprisse estaria cometendo uma infração e, por conseguinte deixaria de participar dos benefícios deste. Aquele que não está em conformidade com o Estado quebra a ordem social, entra em guerra com ele e, assim, deixa de ser um de seus membros.

Rousseau afirma que quando um indivíduo comete alguma conduta delituosa viola o contrato social e como resultado não pode participar dos benefícios próprios de uma sociedade. Nesse sentido, torna-se traidor da pátria e deixa de ser membro do Estado, vez que rompeu o tratado social (GÜNTHER, 2009).

Semelhantemente, Fitche entende que aquele que, voluntariamente, ou por negligência, abandona a convenção estabelecida pela sociedade perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano passa a um estado de ausência total de direitos  (GÜNTHER, 2009).

Já para Hobbes o infrator deve ser mantido em seu status de pessoa, a não ser que pratique delitos de “alta traição”, os quais representam uma negação absoluta à submissão estatal. Então, a partir deste instante, não mais será tratado como súdito, e sim como inimigo (GÜNTHER, 2009).

 Esse entendimento de nem todo crime ser passível de ter um inimigo como agente vem da concepção da natureza má do ser humano. Porém, se não demonstra possuir uma alta periculosidade é porque está apto a tornar-se bom e sair do estado selvagem. O autor de um crime nem sempre é inimigo, isso vai depender de sua periculosidade. Se for pequena terá o tratamento de um cidadão, porém se for grande terá o tratamento dado a um inimigo.

Por sua vez Kant admite tratamentos hostis contra seres humanos que, de modo reiterado se recusassem a participar da vida comunitário-legal, pois não pode ser considerada uma pessoa o indivíduo que ameaça alguém constantemente. Nesse contexto, um indivíduo incapaz de ficar em paz na sociedade e assegurar aos demais um mínimo de segurança tornam-se uma ameaça eterna e assim se comportando permanece em estado de natureza e legitima a adoção de medidas extremas (GÜNTHER, 2009).

Jakobs partindo dessa idéia contratualista aproxima-se mais de Hobbes, embora receba influência de todos os demais juscontratualistas. Não há em sua teoria uma radicalização em na divisão de inimigo do não inimigo da norma (o transgressor e o não transgressor das normas). O que há são infratores caracterizadores ou não de uma ameaça, permitindo a existência de cidadãos dentro do grupo de delinquentes. Assim, Dispõe o teórico:

Um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinquente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo o caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres tem como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato (JAKOBS e MÉLIA, 2009, p.26-27).

Desta feita, o homem em estado de guerra não possui leis e onde não há lei não há injustiça, tudo será permitido contra o inimigo porque para ele não há parâmetros. Tem-se com isso o pressuposto necessário para a admissão de um Direito Penal do Inimigo, qual seja, a possibilidade de se tratar um indivíduo como objeto e não como pessoa.

 

2.5 vestígios no ordenamento jurídico brasileiro

A legislação brasileira participa da tendência mundial de expansão no âmbito penal, que tem como objetivo combater incisivamente a criminalidade por meio da aplicação de um Direito Penal de Exceção. Bem próximo do modelo norte americano de Lei e ordem é derivado do apelo midiático e da atuação de parlamentares no sentido de conter a violência criminalizando cada vez mais condutas e relativizando direitos individuais.

Como exemplo do Direito penal do inimigo no sistema jurídico pátrio tem-se: a Lei de crimes hediondos, antes da alteração da Lei 11.464 de 28 de março de 2007; o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD); a Lei 9.614/98 (Lei do abate de aeronaves suspeitas) além de algumas decisões proferidas em Tribunais.

Seu marco histórico no Brasil veio com a edição da Lei 8.072/90, lei dos crimes hediondos. Até a alteração legislativa de 28 de março de 2007 (Lei 11.464), ela determinava a proibição da progressão de regime para aqueles que praticassem crimes considerados hediondos, impondo o cumprimento integral da pena em regime fechado. Coexistia, no entanto, no mesmo sistema jurídico, tratamentos diversos a depender da classificação do crime em hediondo ou não hediondo.

Quando de sua criação a Lei dos Crimes Hediondos representava um exemplo de legislação influenciada pelo Direito Penal do Inimigo. Nela, determinados criminosos eram tratados de forma mais rigorosa, mitigando garantias asseguradas a todos, como a impossibilidade de progredir de regime, maior prazo para as prisões temporárias e a colocação em presídios de segurança máxima daqueles considerados uma ameaça a ordem ou a incolumidade pública. Sua criação é um exemplo do punitivismo excessivo e do simbolismo que acomete o nosso legislador.

Dentro dessa posição, por vezes, Tribunais de Justiça decidem fundamentando em critérios subjetivos desprezando até o mandamento legal, como a seguir colacionado:

No Brasil, por vezes, Tribunais invocam o direito penal do autor, conforme demonstra o julgamento do Habeas Corpus n° 192242

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO AÇÃO PENAL. QUESTÃODISCUTIDA PELO TRIBUNAL A QUO. POSSIBILIDADE DO PLEITO NA PRESENTE VIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO. FURTO. POLICIAL MILITAR. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. ART. 240, § 1º DO CÓDIGO PENAL MILITAR. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA. ORDEM DENEGADA. (..). V - Quando a conduta se subsume perfeitamente ao tipo abstratamente previsto pela norma penal, não possuindo, entretanto, relevância jurídica por não produzir uma ofensa significativa ao bem jurídico tutelado, há a configuração apenas da tipicidade formal, restando afastada a tipicidade material. Nesta hipótese, ante ao princípio da intervenção mínima, afasta-se a aplicação do Direito Penal. VI - O princípio da insignificância revela-se quando condutas que se amoldam formalmente a determinado tipo legal, não apresentam relevância material, sendo afastada liminarmente a tipicidade penal. VII - O Supremo Tribunal Federal, ao delimitar a aplicação do princípio da insignificância, registrou que devem ser observados os seguintes requisitos: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. VIII - Na hipótese dos autos não se verifica a presença de todos os requisitos para a aplicação do princípio em comento. Conquanto possa se afirmar haver a inexpressividade da lesão jurídica provocada - por ser considerada ínfima a quantia alegada pela impetrante R$ 0,40 (quarenta centavos de Real) - verifica-se na hipótese alto grau de reprovabilidade da conduta do paciente, policial militar, fardado, que, no seu horário de serviço, subtraiu uma caixa de chocolates, colocando-a dentro de seu colete a prova de balas. IX - O policial militar representa para a sociedade confiança e segurança. A conduta praticada não só é relevante para o Direito Penal como é absolutamente reprovável, diante da condição do paciente, de quem se exige um comportamento adequado, ou seja, dentro do que a sociedade considera correto, do ponto de vista ético e moral. X - No art. 240, § 1º do Código Penal Militar, criou o legislador uma causa de diminuição de pena ao furto atenuado, havendo a permissão - caso o agente seja primário e de pequeno valor a coisa furtada - para que o juiz da causa substitua a pena, a diminua ou considere a infração como disciplinar. Note-se que o dispositivo não pode ser interpretado de forma a trancar a ação penal, como quer a impetrante, sendo certo que competirá ao juiz da causa, após o processamento da ação penal, considerar ou não a infração como disciplinar. XI - Ordem denegada, nos termos do voto do Relator.(STJ - HC: 192242 MG 2010/0223704-5, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 22/03/2011, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/04/2011)

 

O HC pedia o trancamento da ação penal, com fundamento no Princípio da Insignificância, pois um policial militar foi acusado de furtar uma caixa de  chocolates. A Quinta Turma do STJ entendeu que, embora inexpressiva a lesão jurídica, a conduta do agente é altamente reprovável, visto ser um policial militar e estar fardado no momento do furto. O valor, dos produtos furtados, seria o equivalente a R$ 0,40 (quarenta centavos) à época. O Ministro do STJ embasou seu voto em um juízo de valor, para aferir se a conduta possuía relevância penal, utilizando o autor e não a conduta como referencial.

A Lei de Execução Penal, também, possui um dos institutos típicos do direito penal do inimigo que é o Regime Disciplinar Diferenciado, introduzido pela Lei 10.792 de 2003,em seu art. 52 da Lei n. 7.210/84 abaixo transcrito:

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

[...]

§ 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

 

O RDD traz em seu bojo uma subjetividade no que tange a punição fundada apenas na suspeita de risco a ordem, a segurança social ou ao estabelecimento prisional. Aqui se pune pelo autor ou por sua periculosidade, independentemente de qualquer ação, omissão ou resultado, mais uma característica do inimigo do direito na legislação brasileira.

De forma sucinta, Damásio de Jesus compartilha desse entendimento quando preleciona que entre nós, o regime disciplinar diferenciado, previsto nos arts. 52 e ss. da Lei de Execução Penal, projeta-se nitidamente à eliminação dos considerados perigos (JESUS, 2008).

Outro exemplo de norma influenciada pela filosofia de Jakobs está na Lei 9.614/98, chamada de Lei do Abate, quando possibilita a destruição de aeronaves suspeitas de estarem transportando armas de fogo ou traficando entorpecentes e drogas afins no espaço aéreo brasileiro, desde que não se identifiquem ou não respondam às ordens de pouso da Força Aérea. A supressão do devido processo legal é patente já que para aplicar a norma basta a suspeita. Trata-se do exemplo mais prático da aplicação do Direito Penal do inimigo no Brasil.

De forma esparsa na legislação pátria é identificável, ainda, acentuados sinais nos seguintes diplomas: no Código de Processo Penal ao tratar da incomunicabilidade do (artigo 21), embora tacitamente revogada pela Constituição Federal de 1988 e ao prevê prisão preventiva (artigo 312) para assegurar a aplicação da lei penal, neste caso o Código de Processo Penal busca eliminar o perigo, um dos objetivos precípuos da teoria de Jakobs; na Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034/95) quando dispõe sobre o emprego de meios operacionais visando a prevenção dos atos praticados por organizações criminosas e na Constituição Federal ao afirmar que, na vigência do estado de defesa e de sítio, algumas garantias constitucionais podem sofrer restrições, tais como o sigilo das correspondências ou das comunicações telegráficas e telefônicas, o direito de reunião e a decretação de prisão sem a devida ordem judicial (artigos 136 e l37).

 

3.0 BRASIL: ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

  3.1 Estado Democrático de Direito: surgimento e situação legal

Inicialmente é impossível fazer reflexões acerca do Estado Democrático de Direito sem fazer uma análise, mesmo que de maneira concisa, das punições ao longo da história da sociedade. Nem sempre vigorou o chamado Estado Democrático de Direito. Ele foi uma conquista do povo contra os poderes soberanos.

Na idade média, por volta do século XIII, o sistema punitivo tinha estreita relação com o poder exercido pela Igreja, e os que adotavam comportamentos contrários aos seus dogmas eram barbaramente mortos. Durante a Santa Inquisição, pessoas foram presas, condenadas e até queimadas em praça pública sob o argumento de atentarem contra a ordem soberana da Igreja Católica e do Direito Canônico.

Os processados durante a inquisição não tinham muitas chances de defesa, sendo que na maioria das vezes nem sabiam o porquê de sua prisão.Aqui não se falava em contraditório, ampla defesa ou em devido processo legal. Neste período surgiu o sistema processual inquisitivo, no qual não havia uma separação das funções processuais de acusação, defesa e julgamento, estavam todas concentradas nas mãos de uma só pessoa, o juiz inquisidor.

Insta observar a obra Na Colônia Penal e perceber, quase doze séculos depois, a descrição da condenação de um homem o qual é levado à sentença sem nenhuma explicação do crime cometido, exatamente como ocorria no século XIII. A ele é dispensado um tratamento humano elevado a condição de objeto. Não possui nome, é identificado apenas como condenado. Desta feita, como a literatura guarda as marcas do seu tempo, é evidente o caráter circunstancial do sistema punitivo, caráter que pode ser confirmado com o ressurgimento, no final do século XX, na ideologia de Jakobs, após a superação do início do mesmo século.

Posteriormente, durante o regime absolutista o poder era concentrado nas mãos do rei e ao povo não eram devidos os direitos fundamentais. Em condições de total submissão e influenciados pelas ideias iluministas advindas no século XVIII, propagadoras de que a razão do poder está no homem e não em Deus, o povo passou a se rebelar contra a concentração do poder.

Cumpre ressaltar que as influências das ideias iluministas atingiram seu ápice na França e como conseqüência deu origem a Revolução Francesa de 1789. Esse momento histórico foi marcado por uma repressão penal violenta, mediante execuções sumárias daqueles que ousaram a subverter o poder soberano.

Após a Revolução Francesa há o nascimento do Constitucionalismo. Esse movimento não tinha como escopo a criação de uma Constituição em cada Estado, uma vez que sempre a tiveram e sempre terão uma lei maior que regerá a ordem social, isso é típico da civilização. A finalidade do Constitucionalismo era fornecer constituições escritas aos Estados, concretizar por meio das letras as leis, a conduta a ser ou não seguida, os deveres e direitos.

Uma consequência das revoluções liberais e do constitucionalismo foi o surgimento do denominado Estado de Direito, no qual tanto os governantes como os governados deviam obediência às leis. Entretanto, a ideia de Estado de Direito foi desvirtuada durante as Guerras Mundiais e vários judeus foram mortos com base na lei alemã, pois o positivismo pregava total obediência às leis. O ordenamento jurídico era intocável, revestia-se de sacralidade. Kafka, registrando seu tempo, retrata no conto Na Colônia Penal o tratamento dedicado à legislação no período entre Guerras Mundiais, uma vez que foi escrito em 1919. Ela cobria-se de um respeito tão grande que era permitido apenas obedecer sem ousar tocá-la.

Para tanto, transcreve-se um trecho que relata metaforicamente o cuidado  e o valor conferido ao livro, pelo Oficial,  cujo conteúdo trazia as sanções correspondentes a cada crime, pois representava o ordenamento legal:

 [...] – Lá no desenhador ficam as engrenagens que comandam o movimento do rastelo; elas estão dispostas segundo o desenho que acompanha o teor da sentença. Eu ainda uso os desenhos do antigo comandante. Aqui estão eles - puxou algumas folhas da carteira de couro – mas infelizmente não posso pôr na sua mão, são a coisa mais preciosa que tenho. Sente-se, eu os mostro ao senhor desta distância, assim poderá ver tudo bem (KAFKA, 1986, p. 46).

O passo seguinte foi, diante da insatisfação do período de Guerras, diferenciar lei vigente de lei válida. Percebeu-se acima das leis valores que devem ser considerados e obedecidos. Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial surge um aspecto novo ao Estado de Direito, o caráter Democrático, surgindo o Estado Democrático de Direito. Nele todos, governantes e governados, devem obediência às leis, porém ao cria-las devem atender os valores de igualdade, liberdade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana.

Hoje, no artigo que inaugura a lei Magna brasileira, o legislador constituinte   prescreve que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Ainda acrescenta como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, a que é um dos  fundamentos mais importante, já que se propaga por todo o ordenamento, sendo seu traço marcante. A importância dada aos direitos humanos fez a doutrina moderna defender a existência de um Estado Democrático e Humanitário de Direito.

 

 

3.2 Sistema Punitivo Democrático

As constituições democráticas, objetivando reprimir as atrocidades dos governos que circundaram as duas Grandes Guerras, estabeleceram, em sua essência, direitos e garantias a todos os cidadãos e criaram mecanismos de auto-limitação.

Os direitos e garantias foram concedidos para que a sociedade, nos momentos de paixões e fraquezas, não se deixassem submeter a um sistema punitivista desenfreado, evitando assim a legitimação de um direito penal pautado no simbolismo e na antecipação de juízos de culpabilidade.

Dentro desse cenário a todos foi concedido o direito a um rol mínimo de liberdades. Essas estão estabelecidas na Constituição que torna o Brasil um Estado de Direito e são elementos legitimadores do sistema punitivo democrático.

A legalidade do ordenamento jurídico penal tem por base a Constituição Democrática brasileira. A lei Maior orienta a técnica legislativa, uma vez que vincula o legislador na formulação das regras que prescreverão as condutas puníveis.

A finalidade de uma lei no topo da pirâmide de Kelsen (Constituição Federal) é servir de parâmetro e evitar a tipificação de condutas penais por meio de normas que não estejam, por exemplo, relacionadas a fatos, mas à pessoas, “ como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem “desocupados” e os “vagabundos”, os “propensos a delinquir (...)”.(FERRAJOLI, 2002, p. 21)

Neste sentido é que se tem como inadmissível, em um sistema punitivo democrático, a existência de tipos penais que descrevam ações tendentes a punir os que supõe ser, real ou potencialmente, perigosos para a hierarquização social.

A criação de condutas puníveis fundamentadas na potencial ameaça que um indivíduo aparenta à sociedade permite a discriminações justificadas em característica pessoais do agente e “enterram” a igualdade, o respeito, a fraternidade, enfim todo o rol estabelecido no artigo 5° da Constituição do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Ao permitir ao juiz analisar as qualidades do agente e não o crime que cometeu, para  subsumi-lo no tipo penal e aplicar-lhe a pena, transforma-se o processo penal em um instrumento de análises subjetivas, arbitrário e inimigo da humanidade. Assim, o Estado tornando-se arbitrário retira a humanidade dos indivíduos, seleciona quem são os inimigos do Estado, viola o Estado Democrático de Direito instituído pela República Federativa do Brasil.

 As hipóteses acusatórias devem ser passíveis de verificação e de exposição à refutação em respeito à ampla defesa e ao contraditório. Dessa maneira, somente poder-se-ia falar em imposição de pena a um fato descrito e reconhecido em lei como delituoso, se este fosse passível de comprovação, através da produção de provas e contraprovas, não em suposições e cogitações por demais imparciais.

O cerceamento da produção de provas é incompatível com o sistema atual e com o próprio sentido da democracia. É típico de período marcado por um sistema penitenciário cruel como a colônia (sistema prisional) da obra Na Colônia Penal de Kafka, entendimento que se confirma no trecho abaixo selecionado;

[...] – Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?

- Ele não teve oportunidade de se defender, disse oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias. (KAFKA, 1986, p.40)

Além do exposto, cumpre observar que um Estado detentor de um sistema punitivo harmônico com os direitos e garantias fundamentais são de interesse de toda a sociedade brasileira, tanto dos "mocinhos" como dos "bandidos" e reafirma seu papel democrático. Salo de Carvalho ratificando esse entendimento dispõe que:

A garantia desses direitos correspondem a pré-condições de convivência, sendo que sua lesão por parte do Estado justificaria o dissenso, a resistência e a guerra civil. O que nos parece relevante sublinhar é o fato de que todas as pessoas, independentemente de incorrerem ou não em sanção penal preservam e devem ter garantidas igualmente condições mínimas de dignidade. O garantimos penal é um instrumento de salvaguarda de todos, desviantes ou não, visto que, em sendo estereótipo de racionalidade, tem o escopo de minimizar a violência e garantir a paz (CARVALHO, 2001, p. 99).

Neste sentido, o sistema punitivo democrático foi o escolhido pela Constituição Federal de 1988, quando instituiu o Brasil como Estado Democrático de Direito e conferiu uma série de garantias aos indivíduos. Essas foram revestidas de respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da nação brasileira.

3.3 O Direito Penal do Inimigo e os direitos e princípios do Estado Democrático de Direito

 

Consoante exposto anteriormente o Estado Democrático de Direito apresenta um rol de direitos e princípios concedidos na Lei Maior do país, portando, de observância obrigatória. Abaixo será confrontado com a Teoria do Direito Penal do inimigo fazendo um paralelo.

A presunção de inocência ou de não culpabilidade impede a imposição das consequências jurídicas, estipuladas para determinado tipo penal, ao acusado ou investigado, antes da sentença criminal transitada em julgado. Nessa linha o Direito Penal do Inimigo resultaria na criação de crimes de mera suspeita ao estabelecer grupos de risco que representam ameaça à sociedade, sem necessitar do início de qualquer ação, pois há uma presunção de que haverá um ataque no futuro.

Já o contraditório e a ampla defesa conferem ao acusado, respectivamente, o direito de ser informado de todos os fatos a ele imputados, bem como de todos os atos judicialmente praticados pela parte adversa no processo, e de poder contra-atacar com os argumentos que considerar necessários. Na proposta de Jakobs o direito de defesa e de contraditório do inimigo sofre uma relativização, pois o homem que não cumpre às leis não deve dela desfrutar.

 A igualdade é um princípio básico para a criação de uma democracia. A Constituição de um Estado Democrático de Direito deve assegurar a igualdade, a fim de que seja resguardado um tratamento igualitário na elaboração de uma lei para situações idênticas. Por outro lado, Jakobs vislumbra a necessidade de coexistir dois direitos penais, do cidadão e do inimigo, gerando uma desigualdade perante a lei de uns e outros.

Seguindo os princípios constitucionais democráticos, sob a ótica penal, acrescenta-se a razoabilidade e a proporcionalidade. Esses visam não só impedir o emprego imoderado das sanções que privam ou limitam a liberdade do homem, mas também restringir o uso das penas dentro do necessário a reprovação e da retribuição. Assim, a periculosidade  anterior ao cometimento de um fato delituoso – e o recrudescimento das sanções presentes na teoria do Direito Penal do Inimigo é incompatível com as noções de proporcionalidade e razoabilidade.

Assinale, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana é o valor supremo da sociedade. Ele agrega todos os direitos fundamentais dos cidadãos, além de ser intrínseca a condição humana, e confere respeito à pessoa como um valor em si.Portanto, concedendo, ao “inimigo”, a condição de não pessoa, o Direito Penal do Jakobs viola não apenas o princípio da dignidade da pessoa humana, como também  a Constituição brasileira e o ordenamento jurídico brasileiro.

 

4.0 EXISTÊNCIA DE UMA DUPLA MORAL DENTRO DA TEORIADE JAKOBS

No decurso da história da humanidade as leis surgiram para permitir uma convivência social harmônica. Nesse sentido, a partir do momento que se molda modelos de conduta e se elabora as regras, surge à sensação de tranquilidade advinda da mera existência de normas.

Nesse contexto, quando na simples presença de um ordenamento jurídico, se deposita o sentimento de segurança e paz social e a realidade, divulgada e vivenciada, relata o contrário, surge a propagação de discursos repressores.

A evolução da sociedade trouxe a complexidade das ações criminosas. Isso não significa dizer que os crimes se tornaram mais violentos, e nem menos violentos, porém mais arquitetados.

A dificuldade no combate ao crime organizado, somada aos embaraços na solução de tantos outros crimes e a divulgação massiva da criminalidade pela mídia, fez surgir o sentimento de insegurança e a ideia de enrijecimento do ordenamento jurídico. Busca-se a paz com simbolização de uma legislação suprema.

Diante disso, Jakobs apresenta, dentro da Teoria do Direito Penal do Inimigo, a defesa da criação de um dúbio Direito Penal, como já mencionado. De um lado aquele dedicado ao cidadão, o qual faz jus ao respeito de todas as garantias e direitos fundamentais; de outro o inimigo, desmerecedor das vantagens da lei que infringiu.

Já é sabido que o fim da teoria é disciplinar o indivíduo que “ousa” infringir a ordem jurídica e restabelecer o correto cumprimento das leis, as quais sempre deverão prevalecer e ser rigidamente cumpridas. Para tanto se usa do Direito simbólico, sistematizado em normas rigorosas com a relativização ou supressão de direitos.

É de verificar, contudo, a existência de uma dupla moral dentro da teoria em questão. O Direito penal do Inimigo, ao tempo que exige o rigoroso império das leis para punir os criminosos e mostrar que regras devem ser respeitadas, nega sua vigência ao deixar de conferir direitos àqueles classificados como inimigos. Isso em um ato de desrespeito ao ordenamento na busca de respeito ao mesmo.

Assim, a teoria admite a supremacia da lei para castigar, mas dispensa a mesma supremacia no momento de acusar, processar, condenar e executar a pena do inimigo.Jakobs busca a coexistência de uma dupla moral incompatível dentro do mesmo sistema jurídico penal.

A incompatibilidade a teoria também está na contradição do seguinte excerto da obra de Kafka utilizada para reflexão desse trabalho:

– Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o restelo. No corpo deste condenado, por exemplo – o oficial apontou para o homem – será gravado: Honra o teu superior! (KAFKA, 1986, p.39).

Condena-se por infringir a ordem suprema e na execução aniquila-se o princípio máximo da dignidade da pessoa humana.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A novela de Kafka espelha, com simetria, a verdade do sistema penitenciário brasileiro. Na Colônia Penal de Franz Kafka representa o robusto sistema prisional e o restelo a crueldade das execuções. O indivíduo vê-se diminuído por um Estado executor que lhe nega assistência e confere o estigma de “excluso” àquele que está na sociedade mas dela não participa. Para este “tipo” de indivíduo defende-se, como única solução, a exclusão.

O restelo da Colônia Penal de Kafka apresenta-nos um sistema penal, cujas falhas trituram os princípios humanitários, juntamente com o corpo do acusado que, para não pedir explicações, tem a voz abafada por um algodão:

 

[...]. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apoia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ele grite [...]. (KAFKA, 1986, P.36).

 

 

Trazendo para a realidade brasileira atual, a ineficácia do sistema jurídico tradicional, em solucionar adequadamente os problemas da criminalidade, e o sentimento de insegurança, patrocinado pela campanha da imprensa sensacionalista,  implantou na população o desejo por um sistema de máxima repressão no combate aos delitos, no endurecimento das penas,  para a restauração da paz.

Dentro dessa visão, conclui-se que, o personagem “condenado” da “Colônia Penal” personifica-se em inúmeros suspeitos e condenados do sistema penal brasileiro, os quais muitas vezes sofrem a execução antes mesmo da sentença, ação que visa através do simbolismo reprimir condutas desvirtuantes. O condenado, primeiro é levado à máquina e nela após horas de sofrimento e de supressão das garantias fundamentais é que “sente” a sentença.

Esse sentimento é terreno fértil para o crescimento de movimentos de expansão do Direito Penal e para propostas de contenção como o Direito Penal do inimigo de Günther Jakobs. Essa teoria defende que o tratamento penal tradicional deve ser aplicado ao acusado-cidadão, delinquente não habitual, até que se exteriorize uma conduta não eventual de delinquir. Contra esse acusado-inimigo é conferido ao Estado o ius puniendi no estado prévio, pois se combate a sua periculosidade. Ou seja, no caso do inimigo, punem-se, até mesmo, os atos preparatórios, como uma forma de prevenir os perigos (JAKOBS, 2009).

De acordo com Luiz Flávio Gomes (2007, p.107), a ideia de Jakobs assemelha-se a teoria Darwiniana: “a natureza elimina a espécie que não se adapta ao meio, assim também o Estado deve eliminar o delinquente que não se adapta à sociedade e às exigências da convivência.”

Entretanto, a teoria do inimigo encontra obstáculos no ordenamento jurídico brasileiro. Seus meios são incompatíveis com o Direito Penal concebido em um Estado de Direito Democrático como o Brasil.

Ocorre que a legitimação da aplicabilidade deste direito penal de contenção, de combate ao “inimigo”, é inadmissível, dentro dos paradigmas do Estado Democrático. A aplicação de um direito penal desvinculado de garantias, pautado em simbolismos e no adiantamento da punibilidade por meras suspeitas (até porque a presunção é de inocência - art.5º, LVII, CF/88), não coaduna com um sistema punitivo democrático, uma vez que despersonalizam o ser humano e fomenta a metodologia do terror.

Ainda que, algumas legislações contemporâneas (RDD, Lei do Abate), tenham permitido vestígios da teoria de Jakobs, a qual visa aumentar o poder estatal e diminuir as garantias fundamentais, o que se deve é frear seu crescimento, pois incompatível com o fundamento maior do Estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana.

Assim, o verdadeiro inimigo do direito penal é o Estado perseguidor do “inimigo”, pois busca o autoritarismo. Ao se legitimar um tratamento arbitrário e desigual, renuncia-se o Estado de Direito, uma vez que transforma a pessoa em objeto e a desnuda de seus direitos essenciais. Além disso, abre-se espaço para o avanço do poder punitivo sobre todos os cidadãos, já que o status de inimigo é subjetivo e cabe a qualquer um. No lugar de paz se autorizará um estado de guerra.

Na tentativa de se evitar uma degeneração da moral é que se utilizou, nesse trabalho, a interdisciplinaridade com a obra “Na Colônia Penal” de Franz Kafka. A Literatura pode contribuir para o aperfeiçoamento crítico, para a capacidade de análise da realidade circundante, no auxílio da defesa e promoção dos direitos fundamentais e na formação dos que trabalham com o Direito. 

Propõe-se, para evitar a formação de uma dupla moral, que a sociedade se vista da figura do “explorador” da Colônia de Kafka. Oportuno colocar-se em uma posição mais afastada possível do senso comum propagado na imprensa sensacionalista. É preciso, porém dúvida a legitimidade dos discursos repressores.

Com suas explanações incisivas, o “oficial” busca o apoio do “estrangeiro” para dar continuidade ao modelo de punição do “antigo comandante”, considerado ultrapassado pelas autoridades da época. Da mesma forma, a mídia (o oficial), adepta do simbolismo impactante das imagens, tenta atrair seguidores, para dar continuidade a um modelo penal autoritário (o antigo comandante) de épocas passadas e que contraditoriamente é exigido embora considerado superado o período do autoritarismo.

Tal como hodiernamente a máquina (execução penal, por vezes antecipada) é apresentada de maneira fria pelo oficial (mídia sensacionalista) remetendo a uma alienação diante do horror da cena de sofrimento do condenado ou acusado (o personagem “condenado” da obra), pois é necessário que ele sinta na pele a culpa e que a sociedade perceba a efetivação da justiça, a força da lei.

Como o novo comandante não pode valer-se dos próprios poderes, para conter um modelo de punição arcaico, ele aproveita a visita do explorador na tentativa de combater os discípulos do seu antecessor e da máquina ultrapassada por ele deixada. Paralelamente o Poder Legislativo (novo comandante) não pode sozinho, utilizar o poder para rechaçar a criação de leis de máxima repressão. O povo (o explorador), verdadeiro detentor do poder, com um olhar externo (estrangeiro), o mais isento possível de qualquer influência, é quem deve reprimir a propagação de leis inconstitucionais, já que os legisladores são meros representantes do povo.

Dessa maneira, o olhar crítico da sociedade vai evitar o renascimento do modelo de punição inquisitorial e arbitrário, que penosamente foi sendo superado, e as ilações fundadas em senso comum serão suplantados. Tal qual o novo comandante, ao perceber que não consegue apoio do viajante/explorador, se coloca na máquina de tortura e é vencido.

 Acrescenta-se que essa reflexão é mais uma demonstração que o Direito Penal do Inimigo não procede. Esse Direito, de bases subjetivas, acabará por classificar todos como inimigos e atingir até mesmo seus defensores, em um verdadeiro extermínio humano.

Por fim, reforçando o posicionamento tomado nesse trabalho, repete-se esta última metáfora, escrita na lápide do antigo comandante (sistema penal autoritário), que ajudou criar o torturante procedimento:

Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai! (KAFKA, 1986, p. )

Em conclusão, sempre haverá adeptos da ideologia da supressão de direitos daqueles que infringem o ordenamento jurídico. Porém é necessária a vigilância social, uma vez que o ius puniendi do Estado não pode ser exercido de forma discricionária. Ele encontra limites nos direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição, em especial a dignidade da pessoa humana. Diante disso, é que se percebe na teoria do Direito Penal do Inimigo uma total incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito, configurando-se um retrocesso para a sociedade.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1]Artigo produzido como resultado de pesquisa para conclusão do curso de Bacharel em Direito da Faculdade

Santo Agostinho.

[2] Acadêmica do IX período de Direito da Faculdade Santo Agostinho.Email: thatianakatiussia@gmail.com

[3] Professora da FSA das disciplinas de Direito e Literatura, Hermenêutica Jurídica. Mestre em Estudos Literários pela UFPI, Especialista em Literatura Brasileira pela UESPI, graduada em Letras pela UFPI, Bacharel em Direito pelo Instituto Camillo Filho, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo LFG, advogada. Email: rrosapi@yahoo.com.br

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