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O DIÁLOGO ENTRE O DIREITO EM SUA VERTENTE CONTRATUAL E A LITERATURA NACIONAL A PARTIR DO LIVRO SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR


Autoria:

Mylena Maria Moura Gomes


Graduanda do 10º Período do Curso de Direito da Faculdade Ciências Humanas e Sociais - Faculdade AGES e estagiária de Direito do Ministério Público do Estado da Bahia (Promotoria Regional de Euclides da Cunha - BA).

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Resumo:

No presente artigo será realizada uma discussão a respeito da teoria contratual a partir da obra literária Senhora, de autoria do escritor brasileiro José de Alencar.

Texto enviado ao JurisWay em 29/10/2014.

Última edição/atualização em 20/11/2014.



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O DIÁLOGO ENTRE O DIREITO EM SUA VERTENTE CONTRATUAL E A LITERATURA NACIONAL A PARTIR DO LIVRO SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR

 

Mylena Maria Moura Gomes

 

RESUMO

 

Neste artigo científico, será realizada uma discussão a respeito da teoria contratual a partir da obra literária Senhora, de autoria do escritor brasileiro José de Alencar. O presente trabalho busca traçar uma análise acerca da constituição, interpretação e fundamentação do contrato de casamento, revestido em vestes de uma negociação mercantil de compra e venda. Para tanto, a discussão aqui apresentada terá como embasamento teórico, as reflexões a respeito do Direito Contratual apresentadas por grandes doutrinadores como Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, Marcos Bernardes de Mello, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Carlos Roberto Gonçalves, João Hélio de Farias Moraes Coutinho, dentre outros, com o objetivo de mediar a reflexão a cerca das questões supracitadas.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: Direito Contratual; Literatura; casamento; negociação; compra e venda.

 

 

INTRODUÇÃO

 

           

O contrato de casamento revestido pelo teor de contrato de compra e venda, apresentado na obra Senhora de José de Alencar, constitui o objeto principal deste estudo inserido em um contexto social determinado por regras e costumes, pelas relações sociais entre diferentes classes, pelos aspectos econômicos e culturais e pelos papéis sociais da mulher e do homem na sociedade brasileira do século XIX, ressaltando as relações mediadas pelo poder do dinheiro.

Um dos objetivos deste trabalho é compreender o diálogo entre Direito e Literatura na definição do contrato de casamento entre os personagens Aurélia Camargo e Fernando Seixas, em Alencar, mediado pelo representante legal da moça (Sr. Lemos, tio e tutor de Aurélia), além de entender o desenrolar da narrativa, seus intermediários, a definição dos termos do contrato matrimonial e o projeto romântico de casamento confrontado com a ambição humana.

Nesse sentido, serão discutidos temas relacionados à função social do casamento na trama, remetendo-se também a seu papel, no cenário atual brasileiro, e tendo como intermediária a essa altercação, a interpretação da temática realizada por alguns doutrinadores como Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira, Marcos Bernardes de Mello, Heloísa Brito de A. Costa e João Hélio de Farias Moraes Coutinho, a estruturação e fundamentação do pacto antenupcial na transação contratual apresentada por Alencar em sua obra, além da formação, classificação, elementos e os princípios contidos no acordo estabelecido pelos personagens alencarianos.

 

 

1 BREVE ANÁLISE DOS FATOS SOCIAIS QUE MOVEM O MUNDO JURÍDICO

 

 

O mundo gira em torno de fatos, que movimentam, modificam e estabelecem a vida em sociedade. Conforme afirma Marcos Bernardes de Mello, “[…] a vida é uma sucessão permanente de fatos” (MELLO, 1988, p. 23). Acontecimentos, desde os mais relevantes até os corriqueiros do dia a dia, são eles que dão a engrenagem à vida social. Tudo o que ocorre no mundo são fatos. Desde a gestação, nascimento até a morte, todos os eventos que integram todo esse relance são perpassados por fatos.

Na sua finalidade de ordenar a vida em sociedade, o Direito considera os fatos de maior relevância no relacionamento entre os seres humanos, aqueles que interferem direta ou indiretamente, afetando de algum modo o equilíbrio da disposição do homem perante os outros homens ou a sociedade, e através das normas jurídicas pressupõem esses episódios como fatos de natureza jurídica, ou melhor dizendo, fatos jurídicos. Para João Hélio de Farias Moraes Coutinho[2],esses eventos devem ser preponderantes “[…] para as relações intersubjetivas humanas. Em outras palavras, para que um fato seja considerado um fato jurídico é mister que haja uma norma pertencente a um determinado sistema jurídico que atribua um efeito jurídico a esse fato” (COUTINHO, 2010, p. 01).    

Os fatos jurídicos são fatos reais a que a norma de Direito enquadra ao mundo jurídico. O fato, enquanto apenas fato e a norma jurídica, enquanto não se realizarem seus pressupostos de incidência (suporte fático) não tem qualquer efeito vinculante relativamente aos homens. No entanto, segundo Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, antes de qualquer coisa, deve-se levar em consideração que:

 

“[…] a) no suporte fático de qualquer fato jurídico, de que surge direito, há, necessa­riamente, alguma pessoa, como elemento do suporte; b) no supor­te fático do fato jurídico de que surge direito de personalidade, o elemento subjetivo é ser humano, e não ainda pessoa: a perso­nalidade resulta da entrada do ser humano no mundo jurídico” (PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 09).

 

 

Dessa forma, entende-se que o suporte fático compreende, em sua estrutura, elementos subjetivos e objetivos. Nessa divisão enquadram-se, respectivamente, os sujeitos e o objeto do suporte fático. Os fatos jurídicos, segundo Marcos Bernardes de Mello, “[…] pressupõem uma necessária referibilidade a sujeitos de direito, porque sua eficácia (jurídica) se liga, essencialmente, a alguém ou a algum ente, inclusive a conjunto patrimonial, a que o ordenamento jurídico outorga capacidade de direito” (MELLO, 2007, p. 50). Os elementos objetivos constituem os objetos (coisas) que compõem o suporte fático, ou seja, a sua atribuição a alguém pelas normas jurídicas. Segundo o autor, os bens da vida, em geral, podem integrar o suporte fático, exceto aqueles em que há norma que os pré-exclua de apropriação, como são os bens de uso comum do povo, e aqueles que por sua natureza são inapropriáveis, como o é o sol, o espaço cósmico etc. (MELLO, 2007, p. 51).

                Os direitos de personalidade são todos os direitos necessários à realização da identidade e/ou da individualidade humana, isto é, à inserção do homem nas relações jurídicas. São direitos inerentes a todo e qualquer ser humano e dizem respeito a sua capacidade de direito, por isso são intangíveis, absolutos, intransmissíveis e irrenunciáveis. De acordo com Pontes de Miranda, “o primeiro direito de personalidade é o de adquirir direitos, pretensões, ações e exce­ções e de assumir deveres, obrigações, ou situações passivas em ação ou exceção” (PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 12).

            O homem tem também para si adquirido o direito à liberdade física (de ir e vir, de associar-se etc.) e de pensamento, determinado pelo ordenamento jurídico. Sendo que a base de todo direito de liberdade está enquadrado no direito de personalidade. Isto significa dizer que todos os direitos de liberdade são direitos de personalidade.

            Contudo, ainda na concepção de Pontes de Miranda a chamada liber­dade de negociar, não é direito de personalidade. Isto por que esse tipo de liberdade está relacionado à autonomia privada do ser humano. Nas palavras do doutrinador:

 

o que se conceitua como liberdade de negócios jurídicos (promessas unilaterais, bila­terais, ou plurilaterais), de casar-se, de testar etc., é apenas o que o direito deixa, dentro de si mesmo, à autonomia da vontade. Muito diferente é o que ocorre com a liberdade de ir, vir e ficar, a de pensar e as outras liberdades que são direitos de personali­dade. A autonomia da vontade é ressaltante quando se trata de distinguir a regra jurídica cogente e as outras, mas já aí é fora de dúvida que o direito cerca o campo deixado à autonomia da vontade (PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 20).

 

 

            O contrato, por exemplo, é um veículo que é movimentado pela autonomia humana. A liberdade de contratar é uma garantia daquele que tem capacidade civil plena, ou seja, daquele que exerce plenamente seus direitos civis, de comprar, vender, locar, doar etc. O artigo 421 do Código Civil brasileiro de 2002 dispõe que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

           

 

2 O CASAMENTO – NEGÓCIO JURÍDICO BILATERAL – ANALISADO A PARTIR DO MODELO APRESENTADO POR JOSÉ ALENCAR, EM SENHORA

 

 

Contratar significa declarar vontades conscientes com a pretensão de fazer valer interesses particulares. Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “[…] contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2009, p. 11).

            No entanto, essa manifestação de vontades exige primeiramente consentimento das partes contratantes (princípio do consensualismo) e pressupõe a conformidade com a ordem legal (princípio da legalidade), sem o que não teria o condão de criar direitos para os agentes e sendo um ato negocial, tem por escopo alcançar objetivos específicos. Para tanto, deve-se enfatizar a opinião de Caio Mário da Silva Pereira a esse respeito. Para ele, “com a pacificidade da doutrina, dizemos então que o contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos […] (PEREIRA, 2003, p. 14).

Mas o que vem a ser a função social do contrato? Ainda na visão de Caio Mário, é:

 

[…] a afirmação de maior individualidade humana.Aquele que contrata projeta na avença algo de sua personalidade. O contratante tem a consciência do seu direito e do direito como concepção abstrata. Por isso, realiza dentro das suas relações privadas um pouco da ordem jurídica total. Como fonte criadora de direitos, o contrato assemelha-se à lei, embora de âmbito mais restrito. Os que contratam assumem, por momento, toda a força jurígena social. Percebendo o poder obrigante do contrato, o contraente sente em si o impulso gerador da norma de comportamento social, e efetiva este impulso (2003, p. 17).

 

 

A definição de contrato estende-se a toda espécie de negócio jurídico em que ocorrer a participação de duas ou mais vontades. Ampliada assim a noção, esta engloba o termo casamento, que tem efeitos de negócio jurídico bilateral em que duas pessoas (homem e mulher) declaram igualmente a vontade de contraírem matrimônio.

Segundo Pontes de Miranda, os romanos deixaram-nos defini­ções que possuem um tanto de grandioso e muito de sacramental, como a de que o matrimônio é a união do ho­mem e da mulher, implicando igualdade de vida e comunhão de direitos divinos e humanos. Porém, com o passar do tempo, os costumes aviltaram-se e apagaram a significação ritual do casamento, isto é, o culto privado perdeu a importância, e a manus caiu aos poucos em desuso (PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 87). Na visão do autor,

 

essas definições não satisfazem mais. Falta-lhes a noção de contrato, essencial ao conceito moderno, à forma igualitária do casamento atual. Tam­pouco nos bastariam as definições canônicas, das quais a mais característica é a do catecismo de Concílio Tridentino: união con­jugal do homem e da mulher, que se contrata entre pessoas capa­zes segundo as leis, e que as obriga a viver inseparavelmente, isto é, em perfeita união uma com a outra […] (PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 87).

 

 

Conforme a definição de Clovis Bevilacqua, o casamento “é contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e a educar a prole que de ambos nascer” (BEVILACQUA apud PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 88).

                Porém, nem sempre o casamento foi visto apenas sob o viés amoroso. Exemplo disso, eram os chamados casamentos de conveniência que a tempos atrás marcavam a sociedade brasileira. Neles terceiros estipulavam, a partir de acordos negociais, o pacto nupcial em que, por muitas vezes, os contraentes nem ao menos se conheciam. Esse acordo não passava de uma transação que tinha como consequência o casamento e estava envolto por interesses sociais e individuais onde o dinheiro era o fator primordial.

                José Alencar, famoso escritor brasileiro, em uma de suas obras de maior repercussão literária, Senhora, desenvolveu tal questão de maneira magistral. A obra, publicada pela primeira vez em 1875, está dividida em quatro partes, quais sejam: o preço, quitação, posse e resgate.

A trama alencariana narra a história de uma jovem de origem humilde, chamada Aurélia Camargo. Esta apaixona-se por Fernando Seixas, rapaz ambicioso que sonha em ascender socialmente. Diante de uma proposta de casamento por interesse, o rapaz decide abandonar seu verdadeiro amor, com quem já tinha um sério compromisso, para casar-se com outra moça mais abastada e cujo pai havia lhe oferecido em troca da união a quantia de trinta contos de réis. A jovem humilde, por força do destino, torna-se herdeira de uma fortuna deixada pelo avô paterno e resolve comprar, por cem contos de réis o rapaz por quem ainda era apaixonada e havia a deixado anteriormente. O contrato de casamento é definido tendo por intermediário o Sr. Lemos, tio e tutor da jovem, cuja identidade permanece oculta até o acerto final dos termos do negócio. A consumação do casamento não se dá, pois trata-se de um acordo de compra e venda e não mais de um casamento por amor. Após descobrir as verdadeiras razões do enlace matrimonial, Seixas resolve então recuperar sua dignidade e, para isso, junta o valor que havia recebido como dote (cem contos de réis) pelo casamento e, assim, devolve à Aurélia a quantia, a fim de ter de volta sua liberdade. Porém, vendo a disposição amorosa de Seixas e sua honestidade em abdicar da sua riqueza, Aurélia o perdoa, deixando que o amor falasse mais alto que o dinheiro e o orgulho.

            A sociedade narrada por Alencar em sua obra é calcada em preceitos morais tradicionais, onde o casamento por conveniência era visto como um veículo de prestígio e ascensão social. O contrato de casamento, na época, favorecia em termos financeiros e sociais. Privilegiava-se o fator dinheiro como definidor dos termos do contrato. O papel do representante legal (Sr. Lemos, tio e tutor de Aurélia) na concretização do contrato de casamento é fundamental, pois na narrativa é ele quem define os termos do contrato.

            A agenciação de casamento é, atualmente, condenada pelo ordenamento jurídico, porque macula a espontaneidade da manifestação de vontade dos nubentes e avilta o matrimônio. No entanto, anteriormente era consentido na legalidade. Exemplo disso eram as chamadas arras, que para Caio Mário “[…] significou de um lado o penhor, a quantia dada em garantia de um ajuste, como também a quantia ou os bens prometidos pelo noivo para sustento da esposa se ela lhe sobrevivesse, sentido em que a emprega Alexandre Herculano, num evidente paralelismo com o dote” (HERCULANO apud PEREIRA, 2003, p. 70).

            Na transação realizada a partir das arras, o negócio era firmado no momento em que é dado o sinal do pagamento, isto é, o contrato apenas completava-se, ou melhor, desenvolvia-se, no momento em que houvesse a efetuação do pagamento. Isto é explicitado na obra alencariana, quando Fernando recebe vinte contos de réis como adiantamento do dote e, em contrapartida, assina um recibo declarando o recebimento do valor e a obrigação de casar-se com a moça, ainda desconhecida, indicada pelo Sr. Lemos, intermediário da negociação. Vale ressaltar que este apresentava-se a Seixas pelo nome de Antônio Joaquim Ramos para despistar qualquer curiosidade em relação a identidade da noiva.

 

[…]

O negociante tirou do bolso a seguinte folha de papel selado.

– Temos que passar primeiro um recibozinho.

– Em que termos?

Depois de uma pequena discussão em que os escrúpulos de Seixas relutaram contra a imposição da necessidade, assinou o moço contrariado esta declaração:

 “Recebi do Ilmo. Sr. Antônio Joaquim Ramos a quantia de vinte contos de réis como avanço do dote de cem contos pelo qual me obrigo a casar no prazo de três meses com a senhora que me for indicada pelo mesmo Sr. Ramos; e para garantia empenho minha pessoa e minha honra.” […] (ALENCAR, 2003, p. 54).

 

 

            Como já visto, o contrato na forma de arras somente se executa a partir do pagamento da quantia vinculada. Atualmente, o Código Civil trata das arras, no entanto, com vinculação diferida da estabelecida no Brasil do século XIX e retratado por José de Alencar no romance. Porém, os tratos do negócio com arras, sendo como dote ou não, ocorrem exatamente como a estipulada no atual Código. Dessa mesma maneira, se aquele que tiver recebido o valor se arrepender do negócio, o art. 418 do C.C.[3] determina que aquele que as deu tem a faculdade de haver o contrato por desfeito e exigir a sua devolução mais o equivalente (devolução em dobro), acrescido de correção monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado. Porém, sendo o contrato resolvido a partir do consenso das partes, ou impossibilitando-se a prestação sem culpa de qualquer das partes, dar-se-á a devolução das arras simples, e não em dobro, porque teriam perdido a sua finalidade, como ocorreu na trama de Senhora. Fernando, após decorridos onze meses do infeliz casamento, arrependido da transação resolve desfazer o negócio e tendo o consentimento de Aurélia devolve a quantia recebida inicialmente mais correção monetária.

            O recibo supracitado é a forma que formalizou o negócio. A partir do recebimento do valor do dote e da assinatura da declaração, Fernando Seixas consentiu com o estabelecimento do contrato antenupcial. Tal contrato instituiu a obrigação sinalagmática, isto é, obrigações para ambas as partes (nubentes). Aurélia obrigava-se a pagar a Seixas os oitenta contos de réis restantes e este se obrigava a casar-se com Aurélia, ou no sentido mais exato e austero, a ser posse desta. Como se pode notar a partir das palavras desta em conversa com Seixas:

 

[…]

- É tempo de concluir o mercado. Dos cem contos de réis, em que o senhor avaliou-se, já recebeu vinte; aqui tem os oitenta que faltavam. Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois este é o nome de convenção (ALENCAR, 2003, p. 111).

 

 

No entanto, ao ressarcir a moça com a devolução da quantia, Seixas recebe de volta o recibo, que significava a efetuação do negócio, e mais ainda, consegue retomar sua liberdade e dignidade ferida.

[…]

- Enfim partiu-se o vínculo que nos prendia. Reassumi a minha liberdade, e a posse de mim mesmo. Não sou mais seu marido. […] (ALENCAR, 2003, p. 212).

 

 

Na formação do contrato, levando-se em consideração o processo adotado pela doutrina, o acordo estabelecido em Senhora seguiu a risca os pressupostos utilizados e admitidos legalmente nos dias de hoje. Um contrato, como tal, resulta da conjugação de duas manifestações de vontades declaradas através de uma proposta, também chamada oferta, oblação ou policitação, e a aceitação. No pacto nupcial firmado na obra, por Aurélia, através de seu tutor, e Seixas, cumpriu os dois requisitos, isto é, houve a formalização da proposta, pelo Sr. Lemos, e Seixas após avalia-a, aceitou-a, consentindo com a proposta, ou seja, finalizando a realização do negócio, no caso o casamento e seguindo os princípios contratuais da autonomia da vontade e do consensualismo.

 

 

3 ASPECTOS INTERPRETATIVOS E CLASSIFICATÓRIOS DO CONTRATO ESTABELECIDO NA OBRA ALENCARIANA

 

 

Na interpretação do contrato, no entanto, presume-se má-fé por parte de Aurélia, pois esta desde o primeiro instante em que cogitou a idéia do acordo matrimonial quis fazê-lo sob forma de pretexto para um certo tipo de vingança, para isso buscou concretizar não a idéia de casar-se com Seixas, mas, por outro lado, comprá-lo, tê-lo como troféu. Para tanto, ela articula um plano engenhoso de acabar com o noivado do rapaz com Adelaide Amaral por quem havia sido trocada, ajudando seu amigo Dr. Torquato Ribeiro a oferecer um dote ao pai de Adelaide por sua mão e, com isso, deixar Seixas livre para aceitar sua proposta. Também, desde o início da negociação, preocupa-se em deixar que sua identidade ficasse oculta para não deixar desconfianças ao futuro noivo de que era com ela que iria contrair matrimônio e somente após efetuada a assinatura do recibo, onde Seixas ficava obrigado a casar-se com ela, revelou-se.

No entanto, a posição de Fernando Seixas em relação ao pacto, mesmo tendo sido por ambição e desejo de ascensão social, não deixou de ser em boa-fé, pois mesmo sendo ultrajado e tendo vivenciado todos os tipos de humilhações não fugiu de sua obrigação perante o contrato. Como o mesmo afirma em diálogo com a esposa:

 

[…]

- Se eu tivesse naquele momento os vinte contos de réis, que havia recebido de seu tutor, por adiantamento do dote, a questão resolvia-se de si mesmo. Desfazia-se o equivoco; restituía-lhe seu dinheiro; recuperava minha palavra; e separávamo-nos como fazem dois contratantes de boa-fé, que reconhecendo seu engano desobrigam-se mutuamente. […]

- Mas os vinte contos,  eu já os não possuía naquela ocasião, nem tinha onde havê-los. Em tais circunstâncias restavam duas alternativas; trair a obrigação estipulada, tornar-me caloteiro; ou respeitar a fé do contrato e cumprir minha palavra. Apesar do conceito que lhe mereço faça-me a justiça de acreditar que a primeira dessas alternativas eu não a formulei senão para a repelir. O homem que se vende, pode depreciar-se; mas dispõe do que lhe pertence. Aquele que depois de vendido subtrai-se ao dono, rouba o alheio. Dessa infâmia isentei-me eu, aceitando o fato consumado que já não poderia conjurar e submetendo-me lealmente, com maior escrúpulo à vontade que eu reconhecera como lei, e à qual me alienara. Invoco sua consciência por mais severa que se mostre a meu respeito, estou certo que não me negará uma virtude: a fidelidade à minha palavra (ALENCAR, 2003, p. 210-211).

 

 

E, por fim, a classificação do contrato estabelecido por Alencar em Senhora, de acordo com os requisitos doutrinados por Carlos Roberto Gonçalves, encontra-se da seguinte forma: é um contrato principal (quanto ao modo porque existe), pois não deriva de nenhum outro; de adesão (quanto à formação), isto porque o Sr. Lemos já levou o recibo pronto para que Seixas apenas assinasse, este não pôde opinar para estabelecer as cláusulas contratuais; bilateral (quanto aos efeitos), porque houve a manifestação de duas vontades; oneroso e aleatório (também quanto aos efeitos), oneroso pois ambos tiveram vantagens no estabelecimento do contrato, Aurélia adquiriu o bem que mais desejava e Fernando recebeu a quantia contratada, e aleatório, no sentido em que Fernando não pôde saber com quem se casaria antes de firmar o acordo, não podendo antever se realmente teria vantagem ou prejuízo no pacto estabelecido; diferido (quanto ao momento de sua execução), isto porque o contrato não foi consumado instantaneamente, mas foi estipulado três meses para a realização do casamento; personalíssimo (quanto ao agente), pois Aurélia escolheu Seixas para casar-se e apenas ele; solenes ou formais, pois se tratava de um pacto antenupcial que obedece à forma estabelecida em lei; definitivo (quanto ao objeto), por se tratar de um contrato de casamento que mais se passou por um contrato de compra e venda, este teve como objeto o próprio Seixas que após o recebimento da avença tornou-se patrimônio de Aurélia; nominado (quanto à designação), pois há no ordenamento legal designação para o mesmo (pacto pré-nupcial) e; típico, pois é um acordo regulado por normas jurídicas e tem seu perfil nelas traçado.

 

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

A partir da leitura da obra literária aqui analisada e dos demais textos que foram utilizados na fundamentação teórica deste trabalho, percebe-se que a discussão aqui levantada é realmente de fundamental importância para o entendimento dos fenômenos que integraram e vêm agregando o universo jurisdicional brasileiro.

            Compreender a questão dos contratos a partir do transporte de uma realidade fática, mesmo tendo sido mera construção romancista, é bastante válida, isto porque instrumenta a consolidação do conhecimento adquirido pela pesquisa realizada e pelas aulas assistidas. O diálogo entre o Direito e a Literatura não apenas na obra alencariana, mas em tantas outras, reflete a multidisciplinaridade cultural e intelectual, tornando possível a apreensão dos fatos jurídicos a partir de suportes fáticos concretos. Faz com que se enxergue a abrangência do campo jurídico na vida em sociedade e o quanto este assiste a dinamicidade da vida social.

            Construir um trabalho como esse é uma batalha intensa, mas também é, ao fim, um nascimento, uma alegria, um novo. Adquirir conhecimentos é deixar-se abrir ao novo, é vencer a luta do desespero e perceber que cada um é capaz de edificar, de questionar, de refletir, de problematizar e, principalmente, de aprender.

 

 

5 REFERÊNCIAS

 

 

ALENCAR, José de. Senhora. 34. ed. São Paulo: Editora Ática, 2003. 215 p.

 

COUTINHO, João Hélio de Farias Moraes. Fato Jurídico. Disponível em: . Acesso em 28 fev. 2011. 10 p.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. v. IV. tomo I. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. III. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

 

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 41-129.

 

______. Teoria do fato jurídico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 01-49.

 

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. v. III. 1ª Edição Eletrônica. Rio de Janeiro, 2003. 373 p.

 

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. tomo VII. Campinas: Bookseller, 2005. 184 p.

 



 

[2] Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Auditor Fiscal do Tesouro Estadual.

[3] Art. 418. Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado.

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