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O ADICIONAL NOTURNO E SUA COMPATIBILIDADE COM O SUBSÍDIO: RESPEITO AOS PRINCÍPIOS REITORES DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


Autoria:

Camilo Soares Guimaraes


Policial Rodoviário Federal, Bacharel em Direito pela UNIR, com especialização em D. Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG e pós-graduando em D. Penal e Processual Penal pela F. de Direito Damásio de Jesus/Complexo Educacional Damásio.

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Resumo:

O presente trabalho visa a tratar do aparente conflito entre a norma constitucional que aborda o sistema remuneratório do subsídio e a que alberga o direito ao adicional noturno, que assiste aos ocupantes de cargos públicos.

Texto enviado ao JurisWay em 24/04/2014.

Última edição/atualização em 23/05/2014.



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O ADICIONAL NOTURNO E SUA COMPATIBILIDADE COM O SUBSÍDIO: RESPEITO AOS PRINCÍPIOS REITORES DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

Camilo Soares Guimarães

 

Resumo

 

O sistema remuneratório dos servidores públicos, antes formado por vencimento e remuneração, passou a contar, a partir da Emenda Constitucional nº19/98, com um terceiro ente, o subsídio, que veio a ser previsto como “parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”. Desde o advento da Medida Provisória nº 305/2006, convertida na Lei 11.358/2006, diversas espécies remuneratórias, antes destinadas aos agentes públicos subvencionados pelo Executivo Federal, dentre elas o adicional noturno, foram excluídas. O presente trabalho visa a tratar do aparente conflito entre a norma constitucional que aborda o sistema remuneratório do subsídio e a que alberga o direito que assiste aos ocupantes de cargos públicos, contemplado no art. 39, § 3º, da Magna Carta, que ordena que seja aplicado a eles o direito à remuneração do trabalho noturno superior à do diurno. Ao final, o objetivo é mostrar que a manutenção do adicional noturno configura, além de um direito do servidor e um dever do Estado, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da proibição do retrocesso dos direitos fundamentais, um prestígio àqueles que atuam em uma situação fisiológica, psicológica e social mais desfavorável, sendo que interpretação diversa deve ser dada por inconstitucional.

                                                         

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Subsídio. Adicional noturno. Isonomia. Proibição de retrocesso.

 

Resumen

 

El sistema retributivo de los funcionarios públicos antes formado por vencimiento y paga, ahora tiene, a partir de la Enmienda Constitucional N º 19/98, una tercera entidad, el subsidio, que pasó a ser reconocido como "única cuota, prohibido el añadir de cualquier gratuidad, asignación adicional, premio, subvención u otro tipo de remuneración o representación". Desde el advenimiento de la Medida Provisional N º 305/2006, convertida en la Ley 11.358/2006, varias especies de remuneración anteriormente destinadas a los funcionarios públicos  subvencionados por el Ejecutivo Federal, entre ellos el adicional nocturno, fueran excluidas. Este trabajo tiene como objetivo abordar el aparente conflicto entre la regla constitucional que aborda el sistema de remuneración del subsidio y la que alberga el derecho de los titulares de cargos públicos previstos en el art. 39, § 3, de la Carta Magna, ordenando que se les aplique el derecho de remuneración por trabajo nocturno superior a la remuneración por el trabajo diurno. Al final, el objetivo es demostrar que el mantenimiento del adicional nocturno configura, además de un derecho del servidor y un deber del Estado a la luz de los principios de la dignidad humana, la igualdad y la prohibición de regresión de los derechos fundamentales, el prestigio aquellos que actúan en situación fisiológica, psicológica y social más desfavorable, siendo que interpretación diferente debe ser dada por inconstitucional.

 

Palabras clave: Derechos Fundamentales. Derechos sociales. Subsidio. Adicional nocturno. Igualdad. Prohibición de regresión.

 

1. INTRODUÇÃO

         O Estado de Direito, como o concebemos nos dias atuais, passou por longas transformações ao longo da história, transmutando-se desde um Estado Absolutista até um Estado democrático de Direito, trajetória essa pautada por muitas lutas na persecução de direitos, sobrevindo, primeiramente, os ditos direitos individuais, aos quais se somaram os direitos sociais e, por fim, os meta-individuais.

           O presente trabalho pretende se ater aos direitos sociais em nossa ordem constitucional, em especial ao direito à percepção de remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (comumente conhecido como adicional noturno), e ao conflito entre a norma constitucional que manda sejam aplicados, aos ocupantes de cargo público, referida remuneração, contemplada no art. 39, § 3º, da Magna Carta, e a norma insculpida também no art. 39, em seu § 4º, que prevê para estes mesmos servidores, quando subvencionados pelo Executivo Federal, o ente remuneratório do subsídio, “parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”.

             Ver-se-á que, diante os princípios reitores de nosso Estado democrático de Direito e da aplicação das regras de hermenêutica constitucional, tal conflito é tão-somente aparente, e que o direito à remuneração diferenciada entre o trabalho em turnos/noturno e o diurno, mais que um direito fundamental social, conquistado, como tantos outros, a duras penas, durante séculos de evolução histórica do Estado de Direito, configura-se num prestígio àqueles servidores que atuam em uma situação fisiológica, psicológica e social mais adversa.

 

2. A EVOLUÇÃO DO ESTADO DE DIREITO E AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

            A evolução dos direitos fundamentais está intimamente ligada à evolução do Estado, posto que antes de se submeter ao império das leis, ou seja, antes de se transmutar em um Estado de Direito, de um modo geral, o Estado era personificado por um único homem ou grupo de homens, fosse ele chamado imperador, faraó, césar, senado, czar, senhor feudal, rei (lembremo-nos da lendária frase atribuída ao monarca absolutista francês Luiz XIV: l'etat c'est moi) que detinha características de divindade suprema, fonte de todo o ordenamento jurídico, mas imune a ele. Assim, livre para não se submeter a suas próprias leis, tal Estado não tinha obrigação para com seus súditos, tidos estes com simples sujeitos de obrigações e não de direitos.

           É certo que a antiguidade clássica não ficou na completa escuridão frente às ideias dos direitos fundamentais, em que o pensamento sofístico se aproximava da ideia de igualdade natural e de humanidade tendo por base a mesma natureza biológica de todos os homens; que em Roma, no plano filosófico e político (e apenas nestes) a ideia de igualdade de direitos entre os homens também floresceu; que tais ideias também floresceram dentro das concepções cristãs medievais do direito natural elaboradas por São Tomás de Aquino e que os direitos fundamentais tiveram, para alguns, seus primeiros esboços nas cartas de franquia medievais, dentre as quais se destaca a Magna Charta Libertatum de 1215, que vinculava a obediência a certos direitos de supremacia do rei à obediência deste para com certos direitos de liberdade estamentais dos senhores feudais. Também não se pode negar que as ideias de “contrato social”, estatuídas por Hobbes, ainda que legitimassem o absolutismo, também levaram, a partir das ideias de Locke, à defesa da autonomia privada, e, notadamente do direito à vida, à liberdade e à propriedade (CANOTILHO, 1997).

            Entretanto, foi tão somente com a luta da burguesia pela não intervenção do Estado (antes tido por Absolutista) na autonomia privada, pelos chamados direitos de defesa dos cidadãos perante o Estado, que culminou com a Revolução Francesa, que as primeiras sementes dos direitos fundamentais realmente brotaram de fato, nascendo consigo o Estado de Direito, definido como “aquele Estado cujo poder e atividade estão regulados e controlados pela lei, entendendo-se direito e lei, nesse contexto, como expressão de vontade geral” (grifo no original) (DÍAZ, 1975, p. 13 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 64).

            De se notar que esta passagem de Estado Absolutista para Estado de Direito (e este por suas diversas fases: liberal, social e democrático) não se deu de forma linear, constante e de uma vez por todas, mas sim, realizou-se com avanços e retrocessos (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009). Sobre o seu surgimento frente o Estado Absolutista, ensina Manoel García-Pelayo:

Convém começar recordando que o Estado de Direito é, em sua formulação originária, um conceito polêmico orientado contra o Estado Absolutista, quer dizer, contra o Estado poder, contra o Estado polícia, que tratava de fomentar o desenvolvimento geral do país e fazer a felicidade de seus súditos à custa de incômodas intervenções administrativas na vida privada e que, como corresponde a um Estado burocrático, não era compatível com a sujeição dos funcionários e dos juízes à legalidade. O Estado de Direito, em seu primitivo sentido, é um Estado cuja função capital consiste em estabelecer e manter o Direito, cujos limites de ação estão rigorosamente definidos por este, ficando bem entendido que Direito não se identifica com qualquer lei ou conjunto de leis (...), mas apenas uma normatividade conforme com a ideia da legitimidade, da justiça, dos fins e dos valores a que devia servir o Direito. (...) significa, assim, uma limitação do poder do estado pelo Direito (...). (...) embora a legalidade seja um componente da ideia de Estado de Direito, não é menos certo que este não se identifica com qualquer legalidade, mas apenas com uma legalidade de determinado conteúdo e sobretudo com uma legalidade que não lesione certos valores pelos e para os quais se constituiu a ordem jurídica e política e que se expressam em norma e princípios que a lei não pode violar. Afinal, a idéia do Estado de Direito surge no seio do jusnaturalismo e em coerência histórica com uma burguesia cuja razões não são compatíveis com qualquer legalidade, nem com excessiva legalidade, porém precisamente com uma legalidade destinada a garantir certos valores jurídico-políticos, certos direitos imaginados como naturais que assegurassem o livre desenvolvimento da existência burguesa (GARCÍA-PELAYO, 1977, p. 52 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 67). 

 

            Da Revolução Francesa brotou a Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen (26/08/1789) – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – documento que elencava  direitos individuais e coletivos dos homens  tidos como universais, posto que válidos e exigíveis a qualquer tempo e em qualquer lugar, pois pertinentes à própria natureza humana – que, juntamente o Virginia Bill of Rights (26/08/1776) – declaração de direitos que precede a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América – foi o marco da positivação ou  constitucionalização dos direitos fundamentais (CANOTILHO, 1997).

            Vê-se surgir o que é denominado na doutrina como os direitos fundamentais de primeira geração, que impuseram aos governantes obrigações de não intervenção na vida privada dos indivíduos, referindo-se às liberdades individuais, tais como liberdade de culto, de consciência, de reunião, a inviolabilidade de domicílio (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009). Direitos que diziam “respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos (...), direitos civis e políticos a traduzirem o valor da liberdade” (LENZA, 2009, p. 670). Daí ter sido chamado Estado de Direito Liberal.

    Canotilho e Vital Moreira elencam como elementos essenciais típicos da concepção liberal de direitos fundamentais o fato de os direitos fundamentais serem meros direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, sendo que este não teria qualquer papel ativo no fomento dos direitos fundamentais, devendo apenas guardar o dever de omissão ante a esfera individual; serviriam as normas de direitos fundamentais apenas para garantir que a atividade estatal estaria restrita aos momentos em que fosse necessário garantir a ordem ao livre desenvolvimento da liberdade individual; vedada estaria qualquer ingerência do Estado na regulamentação sobre os direitos fundamentais, seja sobre seu conteúdo, seja sobre sua utilização; por fim, a liberdade garantida pelos direitos fundamentais teria um fim em si mesma, sendo inadmissível falar em liberdades individuais como meio para se alcançar finalidade diversa, como, por exemplo, liberdade para persecução da ordem democrática. A base de todas as liberdades seria o direito de propriedade privada e o direito de empresa (CANOTILHO, MOREIRA, 1991).

               A despeito da importância que representou, tal modelo de Estado – não intervencionista sobre a economia e a vida privada da classe dominante, a burguesia – serviu apenas aos interesses de uma única classe social que, detentora do poder econômico, tratou logo de tomar para si o poder político e de transformar o Estado de Direito num singelo instrumento de concretização e legitimação da ideologia liberal: liberdade pessoal, propriedade privada, liberdade de contratar e liberdades de indústria e comércio, sem considerar as classes menos favorecidas e exploradas nessa nova ordem político-econômica.

                Elias Díaz, em seu Estado de Derecho y sociedad democrática, faz um resumo das principais críticas a tal modelo, dizendo que:

(...) Com efeito, na ideologia liberal e na ordem social burguesa, os direitos naturais ou direitos humanos identificam-se, sobretudo, com os direitos da burguesia, direitos que só de maneira formal e parcial se concedem aos indivíduos das classes inferiores. No sistema econômico capitalista, que serve de base a esta ordem social, protegem-se muito mais eficazmente a liberdade e a segurança jurídica (ambas, por um lado, imprescindíveis) do que a igualdade e a propriedade: entenda-se, a propriedade de todos (destaque no original). (DÍAZ, 1983, p. 39-40 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 68).

 

              O mesmo autor segue, discorrendo sobre a passagem do chamado Estado de Direito liberal-burguês para o Estado social de Direito, seja de forma pacífica, com as políticas do Welfare State, seja de forma revolucionária, como ocorreu na Rússia em 1917 e na China em 1949:

Uma ampliação da zona de aplicabilidade destes direitos – mas sem alterar substancialmente os supostos básicos da economia – produz-se com a passagem ao Estado social de Direito; constituído este como intento necessário de superação do individualismo, por meio do intervencionismo estatal e da atenção preferencial aos chamados direitos sociais, o que aquele pretende é a instauração de uma sociedade ou Estado do bem-estar. Mais além deste, o processo dinâmico de democratização material e mesmo de garantia jurídico-formal dos direitos humanos, a sua mais ampla realização, é o que por sua vez, justifica, em minha opinião, a passagem do sistema neocapitalista do Estado social de Direito ao sistema, flexivelmente socialista, do Estado democrático de Direito. (DÍAZ, 1983, p. 39-40 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 68).

           

  O momento histórico que impulsiona tal mudança para o Estado social de Direito é o da Revolução Industrial europeia, no século XIX, que impôs à classe trabalhadora péssimas condições de trabalho. É quando sobrevêm movimentos reivindicando melhores condições laborativas e normas assistencialistas, inflados logo em seguida pela destruição provocada pela Primeira Guerra Mundial, no início do século XX (LENZA, 2009).

             Surgiram variados Estados de seguro social, que impuseram uma política de massiva intervenção na economia e de ações estatais que buscavam a justiça social, tendo ganhado espaço uma diferente gama de direitos que não mais correspondiam a um não fazer do Estado, a uma prestação negativa, mas que obrigavam o Estado a prestações positivas: a implementação de serviços de saúde, de educação, de serviços sociais, de políticas prestacionais e protecionistas no âmbito trabalhista. Estavam nascendo os chamados direitos fundamentais de segunda geração (LENZA, 2009; MENDES, COELHO, BRANCO, 2009), que têm, como marcos históricos, a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar, de 1919, na Alemanha, e o Tratado de Versalhes, de 1919, que criou a Organização Internacional do Trabalho, a OIT. No Brasil, a primeira Constituição a prever os direitos sociais foi a de 1934, com Getúlio Vargas, que consagrou os direitos trabalhistas.

O princípio da igualdade de fato ganha realce nessa segunda geração dos direitos fundamentais, a ser atendido por direitos a prestação e pelo reconhecimento de liberdades sociais – como a de sindicalização e o direito de greve . Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos da coletividade, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos tem por finalidade indivíduos singularizados (destaque no original). (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 268).

 

   De se ver que os direitos públicos subjetivos criados, minimamente, pelo liberalismo, exigiam uma postura estatal negativa, ao passo que o Estado Social exigia uma conduta positiva, dirigente, ativista, onde se programassem políticas governamentais que, efetivamente, garantissem o mínimo de bem-estar à população.

     Os elementos típicos essenciais da concepção social de direitos fundamentais residiriam no fato de os direitos de liberdade também serem direitos às condições materiais de seu exercício: não simples direitos negativos, de abstenção do Estado, mas positivos, impostos ao Estado, de modo a torna-los efetivos; os direitos sociais (ao trabalho, à saúde, à habitação, à educação) seriam, em primeira análise, direitos de liberdade, meios de libertação da miséria, da fome, da ignorância, da necessidade; de terem os direitos fundamentais um papel objetivo como elementos de transformação social, e não apenas uma função pessoal e individual, constituindo, desse modo, deveres fundamentais de natureza jurídica ou cívica perante os cidadãos, como indivíduos, e também perante a coletividade; de reclamarem, para sua efetiva proteção e realização, em maior ou menor grau, a intervenção estatal na economia (CANOTILHO, MOREIRA, 1991).

                Ainda que importante o salto no incremento do rol dos direitos fundamentais, o Estado social de Direito não conseguiu levar a concretização desses direitos a todos, a tão esperada democratização econômica e social; não conseguiu garantir a justiça social nem a eficaz participação democrática do povo no processo político.

                As ditaduras fascistas, os governos autoritários e, mais tarde, o modelo comunista vão cedendo lugar às novas democracias, vendo-se surgir então o Estado democrático de Direito que

(...) assentado nos pilares da democracia e dos direitos fundamentais, surge como uma forma de barrar a propagação de regimes totalitários que, adotando a forma de Estado Social, feriam as garantias individuais, maculando a efetiva participação popular nas decisões políticas (LA BRADBURY, 2006).

           

      Um Estado de Direito no qual o poder emana do povo, que o exerce direta ou indiretamente por meio de seus representantes e que tem por finalidade assegurar o efetivo exercício não apenas dos direitos civis e políticos, mas também e especialmente dos direitos sociais, econômicos e culturais (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

                 Com o Estado democrático de Direito, baseado na efetiva partição popular na vida política, num governo do povo, para o povo e pelo povo, surgem os direitos de terceira geração, de “titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção, não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 268).

Passa o Estado a tutelar, além dos interesses individuais e sociais, os transindividuais (ou metaindividuais), que compreendem, dentre outros, o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a paz, a autodeterminação dos povos e a moralidade administrativa (LA BRADBURY, 2006).

           

         Hoje, fala-se em direitos fundamentais de quarta geração, que para Paulo Bonavides, seriam advindos do processo de “globalização política na esfera da normatividade jurídica” e compreenderiam o direito à democracia, à informação e ao pluralismo político, étnico e cultural (BONAVIDES, 1999).

                    A despeito desse escalonamento entre diferentes gerações (ou dimensões) de direitos fundamentais, fato é que, antes de se anularem, se completam e vão se acumulando, posto que seguem válidos os direitos das gerações anteriores juntamente com aqueles das novas gerações, ainda que ganhem, diante destes e da nova realidade social, nova interpretação, como por exemplo, o direito à propriedade, que vem sendo reinterpretado desde a Revolução Francesa até os dias atuais, com a preocupação com a finalidade social da propriedade e a relativização daquele direito frente à proteção ao meio ambiente (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

                   Traçadas, em linhas gerais, as fases da evolução do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, cumpre-nos agora explanar, quanto a estes últimos, alguns de seus pormenores. Vamos a eles.

 

3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS CARACTERÍSTICAS DENTRO DE NOSSA ORDEM CONSTITUCIONAL

       A palavra "fundamental", gramaticalmente, significa tudo aquilo "que serve de fundamento; que é necessário, essencial". Tal conceito se amolda ao sentido real do termo na esfera jurídica. Assim, direito fundamental "é o mínimo necessário para a existência da vida humana” (BREGA FILHO, 2002, p. 66), que deve garantir a existência de uma vida digna, conforme os preceitos do princípio da dignidade da pessoa humana.

      No que tange à expressão "direitos humanos", a despeito de o significado atribuído ser o mesmo, isto é, direitos essenciais à manutenção da vida humana sustentada pelo princípio da dignidade a ela inerente, Brega Filho os distingue, dizendo serem os direitos fundamentais aqueles positivados em uma Constituição, enquanto os direitos humanos são normas de caráter internacional (BREGA FILHO, 2002).

      Para Canotilho, os direitos humanos derivam da própria natureza humana, enquanto os direitos fundamentais são os vigentes em uma ordem jurídica concreta. Entretanto, não estariam estes últimos restritos ao texto constitucional, posto entender o autor que os direitos fundamentais estariam divididos em "formalmente fundamentais", que são os enunciados por normas inseridas no texto constitucional, e "materialmente fundamentais", presentes dentro das leis aplicáveis ao direito internacional, não positivados constitucionalmente (CANOTILHO, 1997).

       Dentro de nossa ordem constitucional, os direitos fundamentais estão dispostos na Magna Carta de 1988, que os trouxe em seu Título II (dos direitos e garantias fundamentais), subdividido em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; partidos políticos. Destarte, o constituinte originário instituiu cinco espécies dentro do gênero direitos fundamentais (MORAES, 2010; LENZA, 2009).

      Porquanto insertas na Constituição Federal, as normas de direitos fundamentais têm natureza constitucional, não só formal, mas também material. Entretanto, o rol de todos os direitos fundamentais constitucionalmente explícitos dentro do Título II é apenas exemplificativo, podendo ser estendido por força do art. 5º, § 2º, que reza que os direitos e garantias constitucionalmente expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (LENZA, 2009).

       Observando os comentários de Canotilho sobre as funções dos direitos fundamentais, tomando por base a Constituição da República Portuguesa, a qual serviu de inspiração ao constituinte originário da nossa Carta de 1988, o constitucionalista português aponta que, além das funções de não discriminação (considerando todos os cidadãos fundamentalmente iguais) e de proteção perante terceiros (impondo um dever aos poderes públicos de proteger os direitos fundamentais da agressão de terceiros), os direitos fundamentais possuem função de defesa e função de prestação social (CANOTILHO, 1997).

       Quanto à função de defesa, em regra, funda-se ela nos elementos da concepção liberal, posto que, além de constituírem os direitos fundamentais normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo a ingerências dos mesmos na esfera jurídica individual (perspectiva jurídico-objetiva), noutra perspectiva, a jurídico-subjetiva, implicam o poder de exercer positivamente (libardes positivas) direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos com vistas a coibir agressões lesivas por parte daqueles (liberdades negativas) (CANOTILHO, 1997).

      Já a função de prestação social, em sentido estrito, significa o direito do indivíduo a uma prestação por parte do estado, seja na esfera educacional, sanitária ou da seguridade social. Entretanto, em sentido mais amplo, significa não apenas o direito de exigir o fomento de políticas públicas sociais, mas também o de exigir a manutenção daquelas já implementadas e a abstenção do Estado em suprimi-las (CANOTILHO, 1997).

       Nesta perspectiva, de se notar que tais funções são inerentes a todos os direitos fundamentais, em menor ou maior grau, sejam eles tidos por direitos e garantias individuais, direitos políticos ou direitos sociais (como se verá mais adiante).

      Como colocado supra, ao longo do texto constitucional (e não penas no Título II) ou mesmo fora dele (como nos tratados internacionais), podem ser encontradas normas de direito fundamental, e que como tais, gozam de certas características comuns a todas, em maior ou menor grau (cumpre ressaltar que tal gradação não será objeto deste trabalho), tais como universalidade, imprescritibilidade, inalienabilidade/indisponibilidade, aplicabilidade imediata e vinculação dos poderes púbicos.

        Dizem serem os direitos fundamentais universais porque destinados, de modo indiscriminado, a todos os indivíduos, em razão somente de sua natureza humana; a despeito disso, são limitados, posto não serem absolutos, seja frente uns aos outros, seja frente a outros valores constitucionalmente protegidos, devendo valer-se o interprete, no caso concreto “da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos”.   (LENZA, 2009).

       São inalienáveis; “não admitem que seu titular o torne impossível de ser exercitado para si mesmo, física ou juridicamente” (MARTINES PUJALTE, 1992, p. 87 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 276). A despeito de parecer ser inerente a todos os direitos fundamentais, há quem acredita deva ser tal característica aplicada apenas àqueles que visem a resguardar diretamente a potencialidade do homem de seu autodeterminar. “Indisponíveis, portanto, seriam os direitos que visam a resguardar a vida biológica (...) ou que intentem preservar as condições normais de saúde física e mental (...)” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 277).

       São eles de aplicabilidade imediata. Foi essa a tendência seguida pela Constituição de 1988, acompanhando o exemplo das constituições da Alemanha (art. 1º, nº 3), da Espanha (art. 33) e de Portugal (art. 18). É o que se depreende da leitura do § 1º do art. 5º do Texto Constitucional que afirma serem as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais de aplicabilidade imediata, norma-princípio que estabelece uma ordem para que se confira a maior eficácia possível aos direitos fundamentais em geral, dando a estes um caráter não apenas programático, mas normativo.

Os juízes podem e devem aplicar diretamente as normas constitucionais para resolver os casos sob sua apreciação. Não é necessário que o legislador venha, antes, repetir ou esclarecer os termos da norma constitucional para que ela seja aplicada. O art. 5º, § 1º, da CF autoriza que os operadores do direito, mesmo à falta de comando legislativo, venham a concretizar os direitos fundamentais pela via interpretativa. Os juízes, mais do que isso, podem dar aplicação direta aos direitos fundamentais mesmo contra a lei, se ela não se conformar ao sentido constitucional daqueles (MENDES, COLEHO, BRANCO, 2009, p. 286).

 

      Estão consagrados em preceitos normativos de cada Estado, notadamente, nas Cartas Políticas, daí dizer serem constitucionalizados (ainda que se faça a ressalva de existirem direitos fundamentais apenas de ordem material), o que traz como consequência, a vinculação de todos os poderes constituídos, inclusive de reforma constitucional. “Os atos dos poderes constituídos devem conformidade aos direitos fundamentais e se expõem à invalidade se os desprezam” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 279). 

     A atividade legiferante tem o dever de guardar coerência com os direitos fundamentais, não apenas de forma a não afrontá-los, mas também de modo a torná-los exequíveis de fato, devendo, para tanto, ser proativa na edição de normas que venham a regulamentar direitos fundamentais, acaso pendentes de concretude normativa. Para além disso, mesmo quando houver mandamento constitucional que preveja que certos direitos sejam regulamentados/restringidos, deve o Legislativo respeitar o núcleo essencial do direito em pauta, furtando-se de torná-lo, no caso concreto, infactível. Neste ponto, toma importância o princípio da proibição do retrocesso, ao qual nos referiremos mais adiante.

     Também a Administração está vinculada às normas de direitos fundamentais, mesmo os seus atos discricionários, devendo ser tomados por nulos aqueles ofensivos a tais direitos. Deve o Executivo interpretar e aplicar as leis, norteado pelos direitos fundamentais.

     Por fim, os direitos fundamentais também vinculam o interprete das normas e seu aplicador ao caso concreto. Ao Judiciário é legado o dever de conferir a tais direitos a máxima efetividade possível, devendo respeito aos preceitos dos direitos fundamentais ao longo de todo o curso do processo (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

 

4. OS DIREITOS SOCIAIS E SUA PROTEÇÃO

             Como citado anteriormente, os direitos fundamentais, dentro de nossa ordem constitucional, foram elencados em cinco diferentes gêneros, dentre os quais destacamos, agora, os direitos sociais, trados no Capítulo II, do Título II, da Constituição de 1988.

               Como direitos de segunda geração,

(...) são concebidos como instrumentos destinados à efetiva redução e/ou supressão de desigualdades, segundo a regra de que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 759).

 

                 Enfatizando a importância dos direitos sociais dentro de nossa ordem constitucional, Rodrigo Brandão diz que

No que tange, especificamente, aos direitos sociais, é bem de ver que a Constituição de 1988, desde o seu preâmbulo, deixa claro que o Estado Democrático de Direito por ela instituído ostenta uma inequívoca dimensão social, já que se destina a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça (...)” (BRANDÃO, 2010, p. 11).

 

    Lembremo-nos que, em maior ou menor grau, as características gerais dos direitos fundamentais são aqui aplicáveis, visto serem os direitos sociais espécie do gênero “fundamental”. Desta feita, gozam, no geral, das mesmas características apontadas anteriormente – universalidade, imprescritibilidade, inalienabilidade/indisponibilidade, aplicabilidade imediata e vinculação dos poderes púbicos.

    Importante observar também que, além de sua componente positiva, isto é, vinculam os poderes públicos a atitudes proativas para a persecução e concretização dos mesmos, também têm uma componente negativa, entendida como um direito à abstenção do Estado e de terceiros.

Assim, por exemplo, o direito ao trabalho não consiste apenas na obrigação do Estado de criar ou de contribuir para criar postos de trabalho (...), antes implica também a obrigação de o estado se abster de impedir ou limitar o acesso dos cidadãos ao trabalho (...) (CANOTILHO, MOREIRA, 1991, p. 127).

 

                  Constituem fundamento constitucional para as ações estatais, conferindo a estas licitude constitucional e se consubstanciam em vetores interpretativos de outras normas constitucionais (CANOTILHO, MOREIRA, 1991).

                 Nossa Carta Política os traz elencados em seu art. 6ª, sendo eles a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.        

                  Logo em seguida, dispõe, em seu art. 7º, sobre os direitos sociais individuais dos trabalhadores, um rol de trinta e quatro incisos – não exaustivo, haja vista falar “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”; portanto, também difusamente previstos por toda a Constituição –, dos quais alguns deles aplicados também aos servidores públicos, porque também trabalhador subordinado, que presta serviços sobre a autoridade de outrem (MORAES, 2010).

                 São normas que visam à proteção do trabalhador contra o arbítrio desmotivado do empregador, à proteção de seu salário e de sua integridade física e metal, dentro e fora do ambiente de trabalho, e à compensação pecuniária pelos desgastes insuperáveis (como os advindos do trabalho noturno e do trabalho insalubre). Enfim, são normas que impõe sejam observadas as mínimas condições dignas de trabalho, isto é, que têm por escopo a proteção da dignidade da pessoa do trabalhador, e, portando, merecedoras de proteção.

                   Existem autores que consideram as normas dos direitos sociais parte do núcleo intangível de nossa Magna Carta, cláusulas pétreas, portanto, protegidas pelos ditames do art. 60, § 4º, IV, considerando o sistema dos direitos fundamentais como único.

(...) parece-nos correta a doutrina majoritária ao salientar que o constituinte de 1988 conferiu o status de cláusulas pétreas aos direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira “dimensão”, sejam eles direitos de defesa ou prestacionais. Isto porque o sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais, cuja eficácia reforçada se revela na aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º), bem como na sua proteção reforçada quanto a ação erosiva do constituinte-reformador (art. 60, § 4º, IV), caracteriza-se pela unicidade (...) (grifos nossos) (SARLET, 2003, p. 58).

 

                   No que concerne à proteção dos direitos sociais como cláusulas pétreas, Rodrigo Brandão afirma que, a despeito de existirem doutrinadores que se fiam a uma interpretação literal do disposto no art. 60, § 4º, inciso IV, e que, por conseguinte, admitem serem cláusulas pétreas apenas a “espécie” direitos e garantias individuais (art. 5º e seus incisos), ou que aceitam que a intangibilidade tão-somente se aplica àquela “espécie” porque revestidos de caráter de defesa e, portanto, vinculados à essência do Estado de Direito (excluindo dessa proteção os direitos sociais nitidamente prestacionais), vários são os fatores a apontar para interpretação diversa.

      De início, a interpretação gramatical do texto constitucional esbarraria na hermenêutica atual, que não a comporta como forma exclusiva de interpretação, pois é insuficiente (BARROSO, 1999 apud BRANDÃO, 2010).

Apresentar-se-ia vazia,

(...) à vista (i) da fluidez semântica e da densidade moral dos “direitos e garantias individuais”, (ii) da circunstância de o próprio constituinte haver aberto o elenco de direitos expressos na Constituição (art. 5, § 2º), e (iii) da notável imprecisão terminológica do constituinte no que concerne à positivação dos direitos fundamentais do indivíduo. (...) convém destacar que a Constituição emprega, por exemplo, as seguintes expressões: “direitos e garantias fundamentais” (Título II), “direitos e deveres individuais e coletivos” (Capítulo I do Título II), direitos sociais (Capítulo II do Título II), “direitos políticos” (Capítulo IV do Título II), “normas definidoras de direitos e garantias fundamentais” (art. 5, p. 1), “direitos e liberdades constitucionais” (art. 5, LXXI), “direitos e garantias individuais” (art. 60, parágrafo 4º, inciso IV da CF), “direito público subjetivo” (especificamente em relação à educação fundamental – art. 208, p. 1), e “direitos humanos” (art., 4, III, art. 5, p. 3 e 109, p. 5, os dois últimos introduzidos pela Emenda Constitucional n. 45/2004) (BRANDÃO, 2010, p. 09-10).

 

   Além disso, uma interpretação sistêmica de nosso Texto Constitucional revela que não há hierarquia jurídica ou axiológica entre direitos de defesa e direitos prestacionais ou hierarquia entres as diversas gerações de direitos fundamentais. O que se percebe, ao revés, é uma harmonia entre o constituinte de 1988 e os ditames dos direitos humanos internacionais que vem a revelar a interdependência das gerações de direitos fundamentais (BRANDÃO, 2010).

   Ainda que no plano da efetivação a diferença entre direitos fundamentais de defesa e prestacionais não possa ser negada, mais precisamente por conta de que os últimos demandam, não raro, custosas políticas públicas sujeitas a limitações financeiras, “no plano específico das limitações materiais ao poder de emenda, soa puramente ideológica a pura e simples exclusão dos direitos sociais prestacionais do âmbito de proteção do art. 60, § 4º, IV, da CF/88” (BRANDÃO, 2010, p. 12).

   Não é demais ressaltar que, como já explanado, os direitos sociais, ainda que tenham grande carga positiva, de direitos prestacionais, também possuem carga negativa, na medida em que ao Estado se impõe não só a obrigação de promovê-los, mantê-los e protegê-los perante terceiros, mas também de se abster de suprimi-los. Sob tal prisma, são, pois, direitos de defesa.

   Para Alexandre de Moraes, os direitos sociais são sim cláusulas pétreas, pois devem ser vistos como direitos e garantias individuais do trabalhador, protegidos, portanto, pela imutabilidade a que se refere o art. 60, § 4º, IV (MORAES, 2010).

    No plano jurídico interno, ainda que nosso Supremo Tribunal Federal não tenha expressamente adotado posicionamento que albergue a aceitação das diversas espécies de direitos fundamentais como cláusulas pétreas, duas de suas jurisprudências evidenciam o que pode ser o início de uma inclinação neste sentido. A primeira delas consta da ADI 939-DF, na qual o STF declarou a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/93, com fulcro na anterioridade tributária (art. 150, III, b, da CF), direito/princípio fora do Título II, Dos direitos e garantias fundamentais, o que mostra que o Supremo não adota a tese que restringe o rol das cláusulas pétreas ao art. 5º e seus incisos. A segunda, na ADI 1946-DF, ainda mais específica no que concerne aos direitos sociais, em que o STF deu interpretação conforme à Constituição ao art. 14 da EC nº 20/98, excluindo a licença maternidade do teto de benefícios previdenciários instituído por citado artigo. No julgado, afirmou o Supremo que a inclusão da licença à gestante no teto previdenciário implicaria discriminação da mulher no mercado de trabalho, algo vedado por força do inciso XXX, art. 7º, da CF, posto que o empregador muito provavelmente deixaria de contratá-las para funções que tivessem remuneração que superassem o teto, haja vista que, no período de gozo da licença, teria que arcar com a diferença entre os valores da remuneração integral e do teto. Tal fato indica que, mesmo que não tenha feito alusão expressa ao “princípio da não-discriminação entres homens e mulheres no mercado de trabalho”,  o STF afastou do art. 14 da EC nº 20/98 interpretação que atingia o núcleo essencial do direito à licença maternidade, um direito social (BRANDÃO, 2010).

                 Citado autor segue com sua explanação e conclui:

Tão importante quanto o que se acabou de expor foi a circunstância de o STF não haver embasado a invalidação da referida exegese na simples supressão de direito inserto no art. 7º, mas na imprescindibilidade da manutenção da licença-maternidade para a preservação da vedação à discriminação de trabalhadores em virtude do sexo, a qual, evidentemente, se consubstancia em condição necessária ao tratamento de homens e mulheres com igual consideração e respeito. Resta nítido, portanto, que o STF não atribuiu a condição de cláusula pétrea pela sua formal positivação no título II da Constituição (alusivo aos direitos e garantias fundamentais), mas pelo seu conteúdo, ou mais precisamente, pelas repercussões deletérias da sua revogação para a proteção de direito materialmente fundamental (BRANDÃO, 2010, p. 13).

 

                 Ainda que nossa jurisprudência pátria não firme entendimento no sentido de serem os direitos sociais fundamentais cláusulas pétreas, e mesmo que, assim considerados, pudessem ser objeto de emenda restritiva – de fato, para alguns doutrinadores, até mesmo o rol dos direitos fundamentais literal e restritivamente interpretados como merecedores de intangibilidade seriam passíveis de emendas restritivas, se considerados à luz dos princípios da proteção do núcleo essencial, da proporcionalidade, da isonomia, e da clareza e da determinação mínimas da restrição (BRANDÃO, 2010) – , fato é que tal restrição há de encontrar limites.

              A doutrina aponta, como um destes limites, o princípio da proibição do retrocesso. Canotilho, ao se referir a tal princípio, afirma que as normas constitucionais de direitos fundamentais de caráter positivo, uma vez concretizados os direitos ali aludidos, tem ao menos a função de garantir a permanência de sua satisfação, o que implica uma “proibição de retrocesso”, pois, uma vez satisfeito o direito, este “transforma-se” em direito negativo ou direito de defesa, obrigando o Estado a se abster de atentar contra ele (CANOTILHO, 1991).

                   Sobre o aludido princípio, também se posiciona Pedro Lenza, ao dizer que “nem a lei poderá retroceder, como em igual medida, o poder de reforma, já que a emenda à constituição deve resguardar os direitos sociais já consagrados” (LENZA, 2010, p. 766).

          A par de os citados autores reconhecerem que tal princípio comporta restrições, mormente quando se confronta a viabilidade concreta de efetivação/manutenção de certos direitos sociais e a conjuntura de incapacidade financeira do Estado (reserva do possível), deve o ente estatal sempre salvaguardar o conteúdo mínimo do direito a ser restringido, isto é, o seu núcleo essencial (CANOTILHO, 1991; LENZA, 2010).

                    O princípio da proibição de retrocesso encontra amparo em outro, com característica de superprincípio: o da dignidade da pessoa humana, sobre o qual se assenta nossa ordem constitucional.

                    Segundo observa Ingo Wolfgang Sarlet:

A dignidade humana não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral (que ela, em última análise, não deixa de ter), mas que constitui norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensão ética já apontada, em valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na qualidade de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa (SARLET, 2005, p. 221-222)

   

      Para o citado autor, o conteúdo da dignidade humana acaba por ser identificado como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais (SARLET, 2005).

                   Destarte, o núcleo essencial assume um papel de blindagem contra o poder legiferante do legislador infraconstitucional e contra o poder reformador do constituinte derivado frente aos direitos fundamentais, todos eles, sob pena de incorrerem em inconstitucionalidade. 

 

5. O ADICIONAL NOTURNO E O ENTE REMUNERATÓRIO SUBSÍDIO

        Como visto no decorrer do texto, nossa Constituição alocou dentro do Título II – Dos direitos e garantias fundamentais – os direitos sociais, vindo a especificar em seu art. 7º os direitos sociais trabalhistas, um rol exemplificativo de 37 incisos.

                    Um destes direitos é a garantia de remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, positivado em nosso ordenamento jurídico, pela primeira vez, na Carta Política de 1937, na Ditadura do Estado Novo, com Getúlio Vargas, em seu art. 137, alínea j (BRASIL a, 2013), e hoje alocado no art. 7º, inciso IX, da Magna Carta de 1988, in verbis:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; (BRASIL b, 2013).

 

        Assim como outros, igualmente presentes no rol exemplificativo do art. 7º, o direito à remuneração do trabalho noturno superior à do diurno é aplicável também aos servidores públicos, por força do art. 39, § 3º, da CF.

                 Tanto na doutrina administrativista como no Direito Administrativo pátrio positivado, tal direito encontra acento dentro do gênero das vantagens pecuniárias, definidas como “parcelas acrescidas ao vencimento-base em decorrência de uma situação fática previamente estabelecida na norma jurídica” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 699).

                Dentro deste gênero, encontramos as espécies adicionais e gratificações. Os adicionais seriam devidos ao servidor por serem uma recompensa pelo tempo de serviço prestado ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais diversas da rotina burocrática, e as gratificações, uma compensação pelos serviços ordinários executados em condições anormais ou mais gravosos à pessoa do servidor (MEIRELLES, 2004). Já Celso Antônio Bandeira de Melo soma a estes dois – adicionais e gratificações – outros dois: as indenizações, que, como os dois primeiros, encontram-se na sistematização da Lei nº 8.112/90, e os benefícios previdenciários (MELO, 2007).  

                    Sem embargo desta distinção, ainda que a doutrina e a legislação infraconstitucional (Lei nº 8.112/90) aloque o direito à remuneração superior do serviço noturno frente ao diurno na espécie adicional – daí a expressão “adicional noturno” (MELO, 2007) – irrelevante a denominação dada, se adicional ou gratificação, sendo importante mesmo é se verificar a real existência do fato que gera o direito ao recebimento da vantagem (CARVALHO FILHO, 2009).  Isto é, se o trabalhador, seja ele empregado ou servidor público laborou no período compreendido entre as 22h00 de um dia e as 05h00 do dia seguinte.

                   A respeito de seu fundamento jurídico, tudo o que fora explanado anteriormente se lhe aplica, posto ser um direito social fundamental, e como tal, como direito de prestação e direito de defesa, deve ser implementado e defendido pelo Estado, devendo este privar-se de obstar-lhe. Deve garantir sua fruição por completo, haja vista ser o “mínimo essencial” do adicional noturno ele próprio. Se há trabalho noturno, é tudo ou nada: ou existe ou não existe.

                    No que tange ao seu fundamento psicossocial, o adicional noturno é uma contraprestação por um serviço em horário mais penoso, que implica em maior desgaste físico, mental e social ao trabalhador.

                    Em sua monografia, a psicóloga Cláudia Ribeiro da Silva explica que

 

(...) com o trabalho noturno, há uma troca dos ritmos biológicos e uma não sincronização do ritmo endógeno. Consequentemente, pode-se perceber uma indisposição física, alterações do sono e distúrbios gastrintestinais nos indivíduos que se submetem a este tipo de trabalho (CLERK, 1988 apud SILVA, 2003, p. 22).

           

         A autora cita variados autores que informam os mais variados prejuízos fisiológicos para aqueles que trabalham no período noturno. Informa desde a má qualidade do sono diurno, em decorrência, tanto de fatores internos (desregulação do ciclo circadiano – nosso relógio biológico indicativo de dia e noite) (FERREIRA, 1985, in VIEIRA,1998 apud SILVA, 2003), quanto externos (sons externos advindos da vida cotidiana “normal”) (KOLLER e outros, 1978, in SPECTOR, 2002, apud SILVA, 2003), passando por distúrbios gastrointestinais, como má digestão, úlceras e gastrites, provocados pela irregularidade dos horários das refeições (RUTENFRANZ, KNAUTH, FISCHER, 1989 apud SILVA, 2003).

 

(...) A partir de estudos anteriores realizados acerca do trabalho noturno, verificou-se uma série de alterações no ritmo biológico do trabalhador (ciclo circadiano; temperatura corporal; nível de glicose no sangue; grau de fadiga; adaptação ao trabalho; rendimento; duração do sono; grau de retenção da informação). As consequências diretas foram: fadiga; desadaptação à atividade; baixo rendimento; baixa capacidade de conciliar o sono normal; maior índice de erros detectados; desequilíbrio nutricional; limite reduzido de responsabilidade; aumento ou aparecimento de patologia de natureza somática; estresse (MAURO e outros, 2004 apud PEREIRA, MARIA, ESPÍNDULA, 2012, p. 5).

 

       Também a vida social dos que trabalham em turnos sofre prejuízos irreparáveis, o que pode se refletir no perfil psicológico do indivíduo:

 

Outro fator importante que o trabalho noturno afeta é a vida social do indivíduo, sendo que se pode considerar quatro componentes importantes: família, amigos, cultura e lazer. Quando o trabalhador dorme, quase todos estão na vida ativa e vice-versa, o que dificulta os encontros com pessoas queridas e o lazer no período noturno, como ir ao teatro, por exemplo (...). Os sincronizadores sociais, vividos por amigos e familiares são outros e, muitas vezes, isto dificulta a relação como o cônjuge (...). O trabalho noturno fixo ainda dá ao indivíduo a possibilidade de se programar e, até mesmo, ocupar-se com outras atividades durante o período livre. Já no caso de trabalho em turnos alternantes, o trabalhador não sabe quando estará livre e, por consequência, fica praticamente impossível se comprometer com a vida social (VIEIRA, 1998 apud SILVA, 2003).

 

                   De se notar que todo o arcabouço argumentativo lógico-jurídico, formal e material, com vistas à proteção dos direitos sociais e, portanto, do adicional noturno (1. o simples fato de serem direitos fundamentais, portanto norteadores das políticas públicas dentro de um Estado democrático de Direito; 2. o fato de virem a ser considerados, ainda que de forma não unânime,  cláusulas pétreas 3. a proibição de retrocesso; e 4. a dignidade da pessoa humana como superprincípio), coaduna-se com o arcabouço argumentativo fático biopsicossocial que justifica uma remuneração diferenciada aos que trabalham a noite e em turnos.

             Sem embargo desta constatação lógica, o Estado brasileiro vem andando na contramão da história das conquistas dos direitos fundamentais, desmantelando, aos poucos, anos de lutas sociais em prol de uma política econômica que o torne “aceitável” dentro do modelo de globalização neoliberal vigente.

                    Tal movimento, que teve início com uma primeira leva de emendas constitucionais tendentes a inserir a iniciativa privada em áreas antes reservadas ao setor público (como as Emendas Constitucionais n.º 6 e 7, relativas à superação de determinadas restrições ao capital estrangeiro, e as Emendas Constitucionais n.º 5, 8 e 9, que flexibilizaram monopólios estatais sobre o gás canalizado, telecomunicações e petróleo), seguiu seu curso com uma segunda leva de emendas destinadas à flexibilização da administração pública e dos regimes previdenciários. Aqui se inserem as EC n.º 19 e 20, ambas de 1998, responsáveis pelas Reformas Administrativa e Previdenciária, e a EC n. 41/03, que implementou a segunda Reforma Previdenciária (PEREIRA, 1995 apud BRANDÃO, 2010; BRANDÃO, 2010).

 

Segundo leitura recorrente no direito brasileiro, tais emendas seguiram o receituário conhecido como “Consenso de Washington”, pois segundo a típica retórica da globalização: “[O] capital internacional só irá se interessar por investir num determinado território se houver um conjunto de condições adequadas, que vão no sentido da desregulamentação, da flexibilização da legislação social, da ampla liberdade de movimentação de capital, previsibilidade e minimização dos custos fiscais e da estabilidade monetária, que por sua vez exige redução dos gastos públicos e equilíbrio fiscal. Esta a cartilha. Como no Brasil muitas destas questões encontram-se na Constituição, esta a direção das reformas.” (SANTOS, 1998 apud BRANDÃO, 2010).

           

       Foi neste contexto, com Emenda Constitucional nº 19/1998, que se extirpou, do rol de direitos sociais trabalhistas aplicados aos servidores públicos, o adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas e que se vem abolindo a fruição de outro: o direito à remuneração do trabalho noturno superior ao do diurno.

      Isto porque, o sistema remuneratório dos servidores públicos, antes formado por vencimento e remuneração, passou a contar, a partir da citada emenda, com um terceiro ente, o subsídio, que veio a ser previsto como “parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”.

     Com EC nº 19, fora acrescentado o § 4º ao art. 39, da CF/88, que instituiu este tertium genus e o tornou obrigatório para os agentes políticos e para algumas categorias de servidores públicos (servidores das carreiras pertencentes à AGU, à DPU, Procuradoria da Fazenda Nacional, às procuradorias dos Estados e do DF, e servidores policiais) e facultativa para os demais servidores públicos organizados em carreira, desde que assim dispusessem leis federais, estaduais, do DF ou municipais, em cada esfera de competência (ALEXANDRINO, PAULO, 2008).

         Fechando os olhos para os ditames do § 3º, também no art. 39, da CF (que elenca como direito social aplicado aos ocupantes de cargos públicos, sem distinção, o direito à remuneração do serviço noturno superior ao do diurno) e para toda carga protetiva de que gozam os direitos sociais fundamentais, fora editada a Medida Provisória nº 305/2006, rapidamente convertida na Lei 11.358/2006, que afirmou serem indevidas, às carreiras do Executivo Federal remuneradas por subsídio, diversas espécies remuneratórias, dentre elas o adicional noturno. 

      Alguns administrativistas afirmam que o intuito do subsídio, como parcela única, foi dar maior transparência à remuneração de certos cargos e, por conseguinte, torna-la mais controlável, impedindo sua constituição por diversas parcelas que, ao final, tinham o simples viés de reajuste salarial, posto que deferidas indistintamente (MELO, 2007; CARVALHO FILHO, 2009).

 

No caótico sistema remuneratório que reina na maioria das Administrações, é comum encontrar-se, ao lado do vencimento-base do cargo, parcela da remuneração global com a nomenclatura de gratificação ou de adicional, que, na verdade, nada mais constitui do que parcela de acréscimo do vencimento, estabelecida de modo simulado. As verdadeiras gratificações e adicionais caracterizam-se por terem pressupostos certos e específicos e, por isso mesmo, são pagas somente aos servidores que os preenchem. As demais são vencimentos disfarçados sob a capa de vantagens pecuniárias (...) (grifos no original) (CARVALHO FILHO, 2009, p. 700).

 

    Sem embargo, não se pode colocar, na vala comum dos penduricalhos com vistas ao incremento salarial indiscriminado, todos os adicionais e gratificações, ainda mais quando previstos para situações específicas e constitucionalmente alocados como direitos sociais fundamentais, como é o caso do adicional noturno.

     Com o implemento do subsídio, apesar de derrogadas as normas legais que preveem vantagens pecuniárias como parte da remuneração, o art. 39, § 4º manteve seu ditame que manda sejam aplicados aos ocupantes de cargos públicos diversos direitos sociais trabalhistas, dispostos no art. 7º, fazendo jus, portanto, a despeito da expressão “parcela única”, à percepção, dentre outros, do adicional noturno. Isto porque, o § 3º refere-se a todos os ocupantes de cargos públicos, sem se referir a regime de retribuição previdenciária específico. Há de se conciliar os §§ 3º e 4º do art. 39, de modo a tirar de cada um sua máxima efetividade (DI PIETRO, 2011)

       Percebe-se que a autora acima faz menção a pelo menos a dois princípios de interpretação constitucional: o princípio da máxima efetividade, pelo qual a norma constitucional deve ter a maior efetividade social possível e o da unidade da constituição, que reza que o texto constitucional deve ser interpretado globalmente, afastando-se possíveis antinomias (LENZA, 2009). 

      Outro autor que assume postura semelhante é Celso Antônio Bandeira de Melo que, apesar de reconhecer a pertinência do sistema de subsídio com vistas a um melhor controle dos gastos públicos com folha de pessoal, afirma que o § 4º do art. 39 tem que ser visto com certos temperamentos, não sendo admitido que aqueles remunerados por subsídio sejam privados das garantias constitucionais resultantes do § 3º do mesmo artigo, havendo de serem-lhes acrescentados os acréscimos resultantes daqueles, hipótese em que a parcela remuneratória deixará de ser única. O fato de serem aqueles servidores remunerados por subsídio não é razão para que sofram tratamento discriminatório perante os demais ocupantes de cargos públicos remunerados de forma diversa (MELO, 2007).

     De se ver que o autor supra se apega ao princípio da isonomia, que tem por axioma “tratar os desiguais de forma desigual, na medida em que se desigualam”, princípio que tem por escopo a igualdade de condições e que deveria ser observado tanto na elaboração quanto interpretação e aplicação das normas. Limita, tanto o Executivo e o Legislativo, que no exercício de sua função legiferante, sob pena de incorrerem em inconstitucionalidade, não devem dele se distanciar, quanto o Judiciário, posto que este como aplicador da norma, deve fazê-lo de maneira igualitária, sem criar diferenciações desarrazoadas (WOLNEY, 2009).

      Corroborando com o afirmado acima, diz-se que o princípio da igualdade, fundamento de nosso Estado democrático de Direito, assim como o é o princípio da dignidade da pessoa humana, tem por destinatários o legislador, a quem se veda valer-se da lei para discriminar pessoas que merecem tratamento idêntico, e o intérprete/aplicador da lei, de modo a impedir que concretize enunciados jurídicos dando tratamento diferenciado a quem a lei colocou como iguais (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

       Feitas tais considerações, como explicar que alguns servidores públicos, que labutam à noite, remunerados por vencimentos, fazem jus a seu respectivo adicional, e outros, que trabalham nas mesmas condições de desgaste físico, metal e psicológico, impingidos pelo trabalho noturno, ao adicional noturno não fazem jus, pelo simples fato de terem seu soldo na forma do subsídio?

     Haveria isonomia de tratamento se, ainda que dentro de um mesmo cargo (como acostuma acontecer dentro das carreiras policiais), aqueles que trabalham em expediente normal, diurno, fossem remunerados da mesma forma que seus colegas que trabalham em regime de escala e sofrem um maior desgaste biopsicossocial por laborarem no período noturno?

       Por estas simples indagações, percebe-se que tanto o Executivo, quando da confecção da MP 305/2006, quanto o Legislativo, quando de sua conversão em lei, pecaram contra o princípio supramencionado.

       Pecaram, não só contra aquele, mas contra outro, o da vedação ao retrocesso, já explanado alhures. Por ele, “uma vez concretizado o direito, ele não poderia ser diminuído ou esvaziado (...) nem a lei poderá retroceder, como em igual medida, o poder de reforma, já que a emenda à constituição deve resguardar os direitos sociais já consagrados” (LENZA, 2009).

      De se ver que, considerando a doutrina apontada no que tange à hermenêutica constitucional e aos princípios constitucionais elencados, forçoso concordar que tanto o Executivo quanto o Legislativo, como fontes legislativas, e o Executivo em si, como aplicador da lei aos seus servidores, afrontaram um direito social, e isso de ver ser revisto.

        Resta-nos saber como o Poder Judiciário, mais precisamente o STF, como órgão máximo defensor da Constituição, que tem pautado suas decisões não apenas com base nos princípios constitucionais implícitos e explícitos, mas também na conjuntura político-econômica nacional, irá posicionar-se frente a este problema.

 

6. CONCLUSÃO

      Os direitos fundamentais sociais foram se formando e se consolidando ao longo da história à duras penas, tendo custado o suor, o sangue e a vida de muitos. Abrir mão dos mesmos, seja de apenas um deles, é abrir caminho para que outros venham a ser tolhidos.

    Se nossos poderes Executivo e Legislativo, por nós eleitos e a quem caberia bem representar-nos, avançam contra eles, em total desrespeito aos princípios da máxima efetividade da constituição, da igualdade, da proibição do retrocesso e, em ultima ratio, ao da dignidade da pessoa humana, em prol de si mesmos e de uma modelo econômico internacional, também contra nós avançam, avançam contra nossa soberania, cabendo a nós, por meio das vias democráticas, nos insurgirmos contra tal  menoscabo. E uma dessas vias (a outra seria uma melhor e maior participação política) é o Judiciário, mormente nossa Suprema Corte.

     E cremos que o STF deva orientar-se no sentido de que a busca por uma afirmação dentro do cenário econômico internacional e as referidas emendas constitucionais não devem desnaturar a dimensão social do nosso Estado, como colocado na Magna Carta de 1988.

    Isto porque, permanecem vigentes os fundamentos que o norteiam, impressos em seu art. 1º e incisos (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho), os direitos sociais fundamentais e os correspondentes deveres que o Estado tem de implementá-los e protege-los mediante políticas públicas proativas de modo a garantir a satisfação do núcleo essencial dos mesmos, este sim, erigido ao status de cláusulas pétreas.

  Portanto, há de se se resolver a pretensa antinomia entre a norma que prevê o subsídio como parcela única e a que garante e resguarda o direito à percepção do adicional noturno, considerando:

a)      Os fundamentos de nosso Estado democrático de Direito: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho.

b)      A essência fundamental do adicional noturno como direito a uma contraprestação por um trabalho mais penoso (trabalho noturno este do qual a sociedade atual não pode prescindir) e que assiste tão-somente ao servidor nesta condição. Aí seu núcleo essencial, devendo ser considerado, nesta medida, cláusula intangível;

c)      A máxima efetividade do texto constitucional, com a otimização de seu texto sem alterar seu conteúdo, primando pela densificação dos direitos fundamentais, ai aplicando os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia, notadamente em seu caráter material;

d)     A harmonização entre ambos os bens constitucionalmente previstos, aplicando o princípio da proporcionalidade, entendo que o adicional noturno não se confunde com outros adicionais e gratificações que, por se revestirem de generalidade (que, por isso são, em verdade, aumentos travestidos vantagens pecuniárias), devem ser extirpados, em respeito à norma constitucional do subsídio.

e)      A inconstitucionalidade de interpretação diversa e da lei infraconstitucional na parte que afirma ser o adicional noturno incompatível com o subsídio. 

Só assim conseguiremos fechar as portas para eventuais outras agressões que possam assolar nossos direitos sociais. Só assim poderemos dizer que vivemos um verdadeiro Estado democrático de Direito, fazendo valer a simples e eficaz ideia de Justiça e Direito, há séculos gravada nos textos do velho Direito Romano: “Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi” [2]

 

 

7. BIBLIOGRAFIA

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[1]             “Justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é de direito”. Frase atribuída a Ulpiano, jurisconsulto romano, que consta no Digesto (533 d.C), uma das partes do Corpus Juris Civilis ou “Código Justinianeu”, surgido em Constantinopla, por iniciativa do imperador Justiniano I, no Império Romano do Oriente, que reuniu, em um único código, um dos maiores legados de Roma: o Direito Romano (Instituições de Justiniano, Livro I, Tít. I, n. 1, 1979 apud NADER, 1995; MARTINS, 2012). 

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